O que leva uma pessoa a cometer um crime?
Pobreza, situação social, vontade, superioridade, ganância? E qual é a
conseqüência desse crime? Podemos listar diversos casos onde o criminoso era um
psicótico que não conseguia parar de matar ou um pai de família, tentando
conseguir comida para os filhos. E as conseqüências podem ser prisão, morte, ou
até liberdade sem nenhuma suspeita. Dependendo do caso, tudo ou nada pode acontecer.
A reflexão sobre o que leva alguém a cometer um crime e o que acontece com essa
pessoa é o que Fiodor Dostoiévski faz em um de seus mais
famosos romances, Crime e Castigo.
Raskólnikov é um jovem
que acabou de abandonar a faculdade de direito em São Petersburgo. Vivendo há
algum tempo longe da família e com dificuldades financeiras, ele monta em sua
mente um plano para conseguir dinheiro. Alióna Ivanovna, uma velha que penhora
objetos de valor, é escolhida para ser sua vítima, uma mulher rabugenta que
arranca dos seus clientes até o último fiozinho de ouro. Nos primeiros
capítulos do romance, dividido em dois volumes na edição dos Clássicos
Abril Coleções, vemos a o assassinato apenas na cabeça de Raskólnikov,
com ele verificando cada passo que deve fazer e instrumentos que tem de usar
para colocar em prática o seu plano.
Podemos considerar Raskólnikov um homem certo,
solidário e justo. Percebe-se isso na cena em que o estudante fala com
Marmeládov, o bêbado no bar, que lhe conta a desgraça de sua família. De certa
forma, o jovem se sensibiliza com a história do homem, chegando a lhe deixar
dinheiro para amenizar seus problemas. Mas a crítica à postura do bêbado
permanece. Raskólnikov sente a escória que envolve Marmeládov ao mesmo tempo
que entende a exploração à sua família para conseguir o que sacia suas
vontades. Há nesse trecho uma batalha entre o certo e o errado, entre valores
de Raskólnikov que se embatem antes dele cometer o crime.
O ex-estudante, inteligente e orgulhoso, decide
assassinar velha, crente de que estaria fazendo um bem às pessoas que faziam
negócios com ela. Mas também mata sua irmã, uma mulher boa que nunca lhe fez
mal. É a reação dele a esse crime que permeia todo o resto da narrativa de
Dostoiévski, mostrando sua apreensão quanto à descoberta de seu ato e como esse
nervosismo agia em seu corpo e mente. Raskólnikov fica ainda mais receoso de
ajuda, fechado e ranzinza, vendo o mundo de forma mais vil enquanto tenta se
desligar do ocorrido, tornando-o um acontecimento sem importância. Aqui surge
Razumíkin, ex-colega e amigo do protagonista que procura ajuda-lo, mas vira
alvo de suas grosserias. Uma das “boas” personagens da trama que, apesar do
tratamento que lhe é dispensado, não deixa de zelar pelo amigo.
É importante ressaltar a forma com que
Dostoiévski narra, permeando a história com tramas paralelas, fazendo suas
personagens se perderem em raciocínios que dão voltas na cabeça do leitor, mas
que sempre retomam o tema principal do livro. Por meio de diálogos e
transcrevendo pensamentos, o autor caracteriza as personagens, mostrando seu
real caráter e conduzindo a trama com seus apontamentos. Certamente, uma forma
bem cansativa de narrar que tira as forças do leitor, mas vale a pena pelo
estudo aprofundado de cada personagem, servindo como crítica e reflexão do
comportamento humano.
Deve-se destacar a passagem em que Raskólnikov
visita Porfíri, o inspetor que investiga o caso, e a discussão entre os dois
sobre a existência do ato criminoso. Ali o autor expõe a explicação moral que seu
protagonista encontrou para se inocentar do assassinato, a brecha que lhe
permitiu matar Alióna Ivanovna. Em todo momento, percebe-se a semelhança entre
os “homens extraordinários” de um artigo de Raskólnikov, aqueles que matam e se
tornam mártires, e ele mesmo. Enquanto explica sua teoria, ele se sente preso
ao pensar que todos na sala sabem que ele é o assassino. Nervoso, Raskólnikov
tenta se manter frio e impassível para demonstrar pouca ligação com o ocorrido.
Não se tem certeza se esse medo é fruto de seus delírios e desconfianças, ou se
as autoridades realmente suspeitam de sua participação no crime.
No início do segundo volume o foco sai de cima de
Raskólnikov, com uma grande passagem falando da morte de Marmeládov e a relação
do jovem com a família do finado. Sem falar no embate entre Raskólnikov e o
noivo de sua irmã, a quem odeia e não aprova o casamento. Aí também cria-se uma
intriga entre os dois e a prostituta Sónia, filha de Marmeládov, que tira dos
olhos do leitor o assassinato de Alióna Ivanovna e os volta para sua família.
Raskólnikov se mostra mais são, principalmente por estar em constante companhia
de Sónia, com quem alivia seus temores e confidencia o crime.
Mas na cabeça do protagonista ainda há a duvida
quanto ao que fez. Sua teoria do assassinato por um bem maior, uma transgressão
necessária, é verdadeira ou ele deve se jogar à culpa, ver que o que fizera
era, em todos os sentidos, um crime? Ele merecia ser severamente punido por
isso? Dostoiévski se estende minuciosamente em todos os pensamentos das
personagens, principalmente aos do jovem assassino. E também cria diversas
tramas que trabalham valores e moral do homem que incrementam ainda mais a
história.
Crime e Castigo é denso,
demorado, e por vezes confuso por conta das voltas que Dostoiévski dá com suas
tramas paralelas. São muitas personagens e diversas histórias que transportam o
leitor para longe da ação principal, mas que ao mesmo tempo acrescentam mais à
compreensão de quem é Raskólnikov. Ele cria uma personalidade forte e faz o
leitor entender o que o ex-estudante pensa e faz. Todas as criações de
Dostoiévski são ricas, seja em suas ações ou em seu psicológico, que montam uma
trama onde cada pessoa tem sua importância. Não digo que a leitura é
obrigatória por ela ser um clássico, mas por tratar as personagens de forma tão
completa.
*Publicado originalmente no "Blog Meia Palavra". Link aqui.
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