sábado, 2 de maio de 2020

A FLOR DOS CAMPOS NEUTRAIS - I*


Fazia poucos anos que a Província de São Pedro do Rio Grande do Sul ganhara seus contornos tais quais conhecemos hoje; contudo, muito tempo demandou para que de fato as fronteiras do sul fossem definidas e apropriadas com exatidão. Por certo período após a formação da província e consequente separação do território oriental, que hoje forma o Uruguai, a larga faixa de terras situada ao sul do Rio Piratini ficou conhecida como “campos neutrais”, terras de ninguém. Muitos se aventuraram durante aquele período, a fim de desbravar o território até então por muitos desconhecido e que, aos poucos, começara a ser povoado, fosse através das guarnições militares, instaladas com a finalidade de delimitar e defender as fronteiras, fosse com a doação de sesmarias àqueles que vinham ao novo continente em busca de conquistar seu pedaço de chão e trabalhar, visando plantar e colher os frutos que a terra lhes ofertasse. Um deles era Jeremias: homem jovem, de médio porte e estatura, viera do arquipélago de Açores em busca de trabalho e, nestas terras, encontrara acolhida. Em pouco tempo de estada no novo continente, com rápida passagem pela Ilha do Desterro e após, por mais de três anos, em Rio Grande, conseguiu juntar algumas economias trabalhando no cais e, por ocasião do destino, foi agraciado com uma pequena porção de terras próxima a uma vila há pouco surgida às margens do São Gonçalo; ali, construiria um pequeno rancho de palha de santa-fé acompanhado de um sortido roçado e iniciaria, a passos curtos, a criação de gado, atividade que lhe seria seu principal sustento. Passava ele a maior parte do tempo em plena solidão, acompanhado apenas do árduo trabalho, do qual encontrava sossego ao avistar o verdor da paisagem campestre ao horizonte, em contraste com o azul celeste das tardes de verão. Tal cenário lhe trazia à mente muitas lembranças. Entre elas, a do rosto de Aurora, sua amada e prometida; a moça de pele clara e cabelos escuros, ondulados e compridos que deixara do outro lado do Atlântico, com a promessa de um dia voltar para a ela buscar: à beira do mar que banha o Porto de Pipas, na Ilha Terceira, olhando no fundo dos olhos castanhos da moça, Jeremias jurou seu amor e selou a promessa. Naquele porto, ao som da batida das pequenas ondas esverdeadas do mar a seus pés, o casal se beijou, banhados, os dois jovens, pela luz dourada do sol poente; um dia ele não tardaria a cumprir o prometido. Apesar de a pouco tempo instalado na província, Jeremias afeiçoara-se aos usos, costumes e vestimentas locais com certa facilidade. Em especial, assimilara com muito gosto o uso da bombacha e a prática de sorver um amargo em seguida que o dia amanhecia. Sua sesmaria possuía um pequeno acesso à margem do São Gonçalo, o qual era rodeado por muitos juncos e gravatás; porém, um pequeno corredor lhe permitia o acesso ao leito do canal, do qual fazia uso por meio de uma canoa. Certo dia de sol, o jovem decidiu que navegaria pelo São Gonçalo, a fim de realizar uma pescaria. Saíra em sua canoa na direção da Lagoa Mirim, de onde sua sesmaria ficava próxima, navegando ao sabor da brisa daquela manhã ensolarada. Encantara-se com a paisagem; previra que, no futuro, aquela região seria próspera. Muito Jeremias navegou até que, quando o sol estava à plena altura, sinalizando a aproximação do meio-dia, deparou-se com o que lhe parecia ser a foz de um arroio. Por ela embrenhou-se e, horas depois, vencendo com certa facilidade a fraca correnteza daquelas turvas águas, veio a dar em um pequeno povoado que ora se formava às suas margens. Ali desceu, a fim de conhecer o lugar. Possuía pouco casario e uma pequena capela de pedra, esta que começava a ser ampliada com a finalidade de acolher mais fiéis. Aquele povoado situado às margens do arroio Grande, que ora começava a tomar forma, era o Curato de Nossa Senhora da Graça do Arroio Grande. Depois de um tempo caminhando pela localidade, o moço encontrou dois senhores advindos dos Açores, cujas fisionomias não lhe eram de todo estranhas; eram amigos de seu falecido pai. Jeremias conversou com eles por mais de hora e, depois de certo tempo, notara que o sol vagarosamente encaminhava-se na direção do poente. Era o momento de embarcar em sua canoa e voltar para seu rancho. Munido de um lampião, para o caso de a noite o encontrar, Jeremias desceu o arroio e costeou a lagoa, rumo à sua sesmaria. Voltava alegre por ter reencontrado gente de sua terra natal, com os quais deixara a certeza de um dia retornar àquele povoado a fim de revê-los. Porém, aquela emoção acabou por nutrir outro sentimento: Jeremias não queria ficar um minuto a mais sequer longe de sua Aurora, sua flor dos açores. Cruzaria o mar o quanto antes, a fim de buscá-la e dela fazer, então, a sua flor dos campos neutrais...

*Uma ficção de Elizandro Rodrigues. Publicada originalmente na Coluna dos Defensores do Patrimônio Histórico e Cultural de Arroio Grande, Jornal Correio do Sul, em 25.10.2019. Na foto, composição de imagens com "mulher à beira mar" (disponível em pinterest.com) e "camélias da chácara", acervo pessoal.