sexta-feira, 7 de abril de 2017

Um Piano, Um Romance*



Todas as tardes de verão eram propícias para Marcos. O jovem estudante de ciências humanas vinha passar suas férias no Arroio Grande, na casa de seus pais, aproveitando para rever seus amigos de infância e praticar um de seus passatempos favoritos: tocar piano. Todos os dias, perto das três da tarde, Marcos se dirigia de sua casa, próxima onde atualmente é a Torre do Ganso, famosa pela “Voz dos Pampas”, na direção do Clube Instrucção e Recreio. Para a sua sorte e felicidade, fizera pouco tempo que o Coronel Antônio Maria Batista Maciel, juntamente com sua senhora, Dona Florisbela Silveira Maciel, haviam doado para aquele clube o piano existente na sede da Estância Santa Teresinha, a “Charqueada dos Aguiar”, juntamente com um conjunto de espelhos daquela propriedade.


Marcos passava uma boa fração das tardes no salão do clube, próximo ao correr de janelas com vista para a rua principal e à praça central, onde se localizava o piano. O jovem deslizava seus dedos pelas teclas daquele instrumento, tocando as mais diversas melodias, desde polcas até os clássicos, assim como os gêneros mais ouvidos naquela época. As pessoas que passavam na rua naquele período da tarde admiravam a sonoridade extremamente aprazível e extasiante que provinha do salão do clube. A música preenchia todos os espaços e fazia com que se formasse uma aura mítica e surreal pelas dependências do antigo prédio. Os funcionários da diretoria, assim como os demais integrantes do quadro de pessoal, por vezes paravam suas atividades para prestigiar aqueles momentos de talento e inspiração do jovem, em especial, uma das funcionárias: Celina...


Celina era uma jovem de média estatura, cabelos castanho-escuros e pele moreno-clara; possuía olhos escuros, cor de jabuticaba, e um semblante leve. Fazia cerca de um ano que trabalhava no clube, na função de faxineira do salão. Sua rotina era bastante monótona, da casa para o trabalho, do trabalho para a casa; porém, apesar da monotonia, nunca deixava de sonhar e idealizar felicidades vindouras. Seus dias ganhavam cor e beleza no simples fato de ouvir as canções tocadas ao piano por Marcos naquelas tardes de verão... Certo dia, o jovem tocara “Noturno”, de Chopin; Celina ouvira atentamente, e, à noite, em casa, olhava a lua cheia da janela da sala e recordava a música, como que se estivesse sendo tocada novamente. Marcos notara seu ouvido atento às músicas que ele tocava e, na tarde seguinte, antes de sentar-se ao piano para mais uma tarde de música, foi à procura de Celina pelas dependências do Clube...


Marcos procurou por Celina por todas as dependências do Clube Instrucção e Recreio, porém não a encontrou. Celina havia ido ao Armazém do Chico Góz, com a finalidade de buscar os produtos necessários para encerar o assoalho do salão. O moço, por sua vez, dirigiu-se ao piano, sentou-se e começou a pensar nas músicas e na bela jovem. Em sua mente, começou a esboçar a trilha sonora que tocaria ao piano naquela tarde.
Marcos era de um talento pouco conhecido por estas terras outrora neutrais: sabia tocar ao piano boa parte dos clássicos, sem necessitar fazer uso de partitura; o jovem, àquela idade, já era conhecido por ser uma enciclopédia musical. Em via contrária, Celina sempre foi grande admiradora de música; quando adolescente, foi corista no coral das missas de domingo da Matriz, na época em que estava fazendo a primeira eucaristia. Era reconhecida pelo seu tom suave ao cantar as músicas ensaiadas junto às freiras. Quis o destino que aqueles dois, ambos jovens, de diferentes origens, porém com o mesmo amor pela música, se encontrassem naquele clube.


Marcos havia acordado estranho naquele dia: ao mesmo tempo em que estava um pouco eufórico, carregava consigo uma certa angústia, uma melancolia. Por isso decidiu que iria começar aquela tarde com Bach e, logo após, tocaria uma composição de Schubert. E assim foi: Quando Celina retornava do armazém, começou a escutar, à medida que se aproximava do clube, a sonoridade agradável e hipnotizante que vinha em sua direção. Marcos tocava o Prelúdio nº 1 de Bach; seus dedos hábeis e suaves quase que deslizavam pelas teclas do piano. Por estas terras, ainda não existia pianista que a ele se igualasse. Celina adentrou o prédio quase que carregada pelas notas daquele prelúdio; foi na direção do almoxarifado, a fim de deixar os produtos que ora havia comprado no armazém e se dirigiu, depois, ao salão.

Quando lá chegava, Marcos havia começado a tocar a introdução da Ave Maria de Schubert; Celina, naquele instante, havia alcançado sua glória: era sua canção preferida, desde a época em que foi corista na Matriz. Eis que ela começou a cantar, suavemente, acompanhando o piano de Marcos. Ambos entraram em harmonia sonora, física e espiritual: cantavam e tocavam olhando-se nos olhos. Após a canção, Marcos e Celina se aproximaram e ficaram amigos, de amigos passaram a namorados e de namorados a noivos: a música os uniu.


Apesar da resistência de ambas as famílias, Celina e Marcos decidiram que iriam se casar. Já era outono quando a cerimônia de casamento aconteceu: as folhas das árvores da Praça Central repousavam por sobre o chão do adro da Matriz, formando um esparso tapete pelo caminho. A cerimônia foi simples; mesmo assim, a Ave Maria foi cantada quando Celina atravessou a nave para chegar ao altar e aos braços de Marcos. Com um beijo à testa da moça, o enlace matrimonial havia sido selado. E o jovem casal partiu, feliz, rumo à lua de mel.


De Marcos e Celina, pouco se soube depois de terem se casado; ambos se foram de muda do Arroio Grande para a capital, onde o jovem terminara seus estudos. Lá, continuaram a escrever suas páginas no livro da vida, acompanhados de muita música. O prédio do clube, anos após, passou por ampla reforma, que lhe tirou o estilo neoclássico e lhe atribuiu formas e contornos mais modernos; ainda assim, o piano lá continuou, tal qual um senhor idoso que insiste em querer vencer o tempo; porém, aquele velho instrumento ainda se encontra capaz de manter, em suas teclas e entranhas, a memória daqueles áureos dias em que Marcos tocara e encantara a todos, em especial Celina, nas agora distantes tardes de verão...




*Uma ficção de Elizandro Rodrigues. Crônica publicada em duas partes no Jornal Correio do Sul de Arroio Grande, em 16.03.2017 e 30.03.2017. 

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