Todas as tardes de verão eram
propícias para Marcos. O jovem estudante de ciências humanas vinha passar suas
férias no Arroio Grande, na casa de seus pais, aproveitando para rever seus
amigos de infância e praticar um de seus passatempos favoritos: tocar piano.
Todos os dias, perto das três da tarde, Marcos se dirigia de sua casa, próxima
onde atualmente é a Torre do Ganso, famosa pela “Voz dos Pampas”, na direção do
Clube Instrucção e Recreio. Para a sua sorte e felicidade, fizera pouco tempo
que o Coronel Antônio Maria Batista Maciel, juntamente com sua senhora, Dona
Florisbela Silveira Maciel, haviam doado para aquele clube o piano existente na
sede da Estância Santa Teresinha, a “Charqueada dos Aguiar”, juntamente com um
conjunto de espelhos daquela propriedade.
Marcos passava uma boa fração das
tardes no salão do clube, próximo ao correr de janelas com vista para a rua
principal e à praça central, onde se localizava o piano. O jovem deslizava seus
dedos pelas teclas daquele instrumento, tocando as mais diversas melodias,
desde polcas até os clássicos, assim como os gêneros mais ouvidos naquela
época. As pessoas que passavam na rua naquele período da tarde admiravam a
sonoridade extremamente aprazível e extasiante que provinha do salão do clube.
A música preenchia todos os espaços e fazia com que se formasse uma aura mítica
e surreal pelas dependências do antigo prédio. Os funcionários da diretoria,
assim como os demais integrantes do quadro de pessoal, por vezes paravam suas
atividades para prestigiar aqueles momentos de talento e inspiração do jovem,
em especial, uma das funcionárias: Celina...
Celina era uma jovem de média estatura,
cabelos castanho-escuros e pele moreno-clara; possuía olhos escuros, cor de
jabuticaba, e um semblante leve. Fazia cerca de um ano que trabalhava no clube,
na função de faxineira do salão. Sua rotina era bastante monótona, da casa para
o trabalho, do trabalho para a casa; porém, apesar da monotonia, nunca deixava
de sonhar e idealizar felicidades vindouras. Seus dias ganhavam cor e beleza no
simples fato de ouvir as canções tocadas ao piano por Marcos naquelas tardes de
verão... Certo dia, o jovem tocara “Noturno”, de Chopin; Celina ouvira
atentamente, e, à noite, em casa, olhava a lua cheia da janela da sala e
recordava a música, como que se estivesse sendo tocada novamente. Marcos notara
seu ouvido atento às músicas que ele tocava e, na tarde seguinte, antes de
sentar-se ao piano para mais uma tarde de música, foi à procura de Celina pelas
dependências do Clube...
Marcos procurou por Celina por
todas as dependências do Clube Instrucção e Recreio, porém não a encontrou.
Celina havia ido ao Armazém do Chico Góz, com a finalidade de buscar os
produtos necessários para encerar o assoalho do salão. O moço, por sua vez,
dirigiu-se ao piano, sentou-se e começou a pensar nas músicas e na bela jovem.
Em sua mente, começou a esboçar a trilha sonora que tocaria ao piano naquela
tarde.
Marcos era de um talento pouco
conhecido por estas terras outrora neutrais: sabia tocar ao piano boa parte dos
clássicos, sem necessitar fazer uso de partitura; o jovem, àquela idade, já era
conhecido por ser uma enciclopédia musical. Em via contrária, Celina sempre foi
grande admiradora de música; quando adolescente, foi corista no coral das
missas de domingo da Matriz, na época em que estava fazendo a primeira
eucaristia. Era reconhecida pelo seu tom suave ao cantar as músicas ensaiadas
junto às freiras. Quis o destino que aqueles dois, ambos jovens, de diferentes
origens, porém com o mesmo amor pela música, se encontrassem naquele clube.
Marcos havia acordado estranho
naquele dia: ao mesmo tempo em que estava um pouco eufórico, carregava consigo
uma certa angústia, uma melancolia. Por isso decidiu que iria começar aquela
tarde com Bach e, logo após, tocaria uma composição de Schubert. E assim foi: Quando
Celina retornava do armazém, começou a escutar, à medida que se aproximava do
clube, a sonoridade agradável e hipnotizante que vinha em sua direção. Marcos
tocava o Prelúdio nº 1 de Bach; seus dedos hábeis e suaves quase que deslizavam
pelas teclas do piano. Por estas terras, ainda não existia pianista que a ele
se igualasse. Celina adentrou o prédio quase que carregada pelas notas daquele
prelúdio; foi na direção do almoxarifado, a fim de deixar os produtos que ora
havia comprado no armazém e se dirigiu, depois, ao salão.
Quando lá chegava, Marcos havia
começado a tocar a introdução da Ave Maria de Schubert; Celina, naquele
instante, havia alcançado sua glória: era sua canção preferida, desde a época
em que foi corista na Matriz. Eis que ela começou a cantar, suavemente,
acompanhando o piano de Marcos. Ambos entraram em harmonia sonora, física e
espiritual: cantavam e tocavam olhando-se nos olhos. Após a canção, Marcos e
Celina se aproximaram e ficaram amigos, de amigos passaram a namorados e de
namorados a noivos: a música os uniu.
Apesar da resistência de ambas as
famílias, Celina e Marcos decidiram que iriam se casar. Já era outono quando a
cerimônia de casamento aconteceu: as folhas das árvores da Praça Central
repousavam por sobre o chão do adro da Matriz, formando um esparso tapete pelo
caminho. A cerimônia foi simples; mesmo assim, a Ave Maria foi cantada quando
Celina atravessou a nave para chegar ao altar e aos braços de Marcos. Com um
beijo à testa da moça, o enlace matrimonial havia sido selado. E o jovem casal
partiu, feliz, rumo à lua de mel.
De Marcos e Celina, pouco se
soube depois de terem se casado; ambos se foram de muda do Arroio Grande para a
capital, onde o jovem terminara seus estudos. Lá, continuaram a escrever suas
páginas no livro da vida, acompanhados de muita música. O prédio do clube, anos
após, passou por ampla reforma, que lhe tirou o estilo neoclássico e lhe
atribuiu formas e contornos mais modernos; ainda assim, o piano lá continuou, tal
qual um senhor idoso que insiste em querer vencer o tempo; porém, aquele velho
instrumento ainda se encontra capaz de manter, em suas teclas e entranhas, a memória
daqueles áureos dias em que Marcos tocara e encantara a todos, em especial
Celina, nas agora distantes tardes de verão...
*Uma ficção de Elizandro Rodrigues. Crônica publicada em
duas partes no Jornal Correio do Sul de Arroio Grande, em 16.03.2017 e
30.03.2017.
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