sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Navegantes*


Por Elizandro Rodrigues

Após o almoço, Miguel se retirou da mesa, subiu as escadas e foi para a biblioteca, a fim de descansar acompanhado de uma boa leitura. Era Dia de Nossa Senhora dos Navegantes e ele estava de férias no Arroio Grande, no sobrado de sua família, em razão do recesso da Faculdade de Direito na capital. O início da tarde, naquele dia, apresentava um precoce frescor de outono, demonstrando que o verão, contrariando as previsões, despedir-se-ia mais cedo. Apesar disso, o sol brilhava, acompanhado de um azul celeste bastante acentuado. Uma nuvem sequer havia para que fizesse sombra sobre estas terras de paz. Aliás, muito raramente costuma chover nesta região na ocorrência desta data. Sentado à beira da janela, o jovem apreciava a leitura de “Os Lusíadas”, de Luís de Camões; naquele momento, estava a ler o 4º Canto da obra do escritor português, no momento em que ele descreve os preparativos para a partida de Vasco da Gama desde a Praia de Belém e o choro e lamento daqueles que ficavam e assistiam a partida das naus rumo ao mar impiedoso. Atônito, Miguel buscou o marca-páginas na mesa de apoio, fechou o livro e viajou em seus pensamentos. Olhando pela janela, começou a associar os acontecimentos narrados por Camões com a conhecida religiosidade dos portugueses, trazida para estas terras com os colonizadores. Apesar de ser conhecedor da devoção das pessoas à protetora dos que se aventuram nas águas, veio à sua mente uma comoção repentina. Interrompido de seus pensamentos, ouviu uma movimentação vinda da rua. Era aproximadamente três horas da tarde quando o jovem descia as escadas, ao mesmo tempo em que vestia o paletó, indo na direção do portal do sobrado. Parado nos degraus de mármore da entrada do prédio, observou o aglomerado de pessoas que vinham pela rua caminhando em direção à Matriz: era a procissão de Nossa Senhora dos Navegantes. Aqueles que vinham na frente carregavam a estátua de Nossa Senhora envolta em um manto azul-marinho, posta dentro da miniatura de um barco de madeira. Quatro eram os fiéis que a carregavam. Os demais integrantes da procissão vinham atrás daqueles primeiros, carregando consigo uma vela acesa em uma das mãos e o terço enrolado ao pulso, enquanto que na outra mão traziam ramos de flores. Em coro, cantavam em tom de voz médio liturgias alusivas à data que ora se comemorava. Um sentimento diferente tomou conta de Miguel, que, ao ver se aproximar a procissão – a qual passou em frente à sua casa, uma vez que esta se localizava na rua que se dirigia à Matriz –, juntou-se aos demais fiéis e os seguiu no cortejo à padroeira dos que navegam. Da Matriz, acompanhados do padre – que naquele momento a eles havia se juntado – os fiéis se dirigiram à ponte e, consequentemente, ao arroio. À beira das águas, o padre proferiu um sermão seguido de orações, aos quais os fiéis ouviam atentamente. Foi então o momento em que se repousou a pequena embarcação com a estátua de Nossa Senhora nas águas: os quatro fiéis dela ficaram próximos, uma vez que a protetora retornaria em procissão à igreja. Enquanto isso, os demais faziam seus pedidos e suas orações às margens do arroio, largando os ramos de flores em seu leito, como que em agradecimento à proteção ora concedida pela padroeira das águas. O jovem assistia a tudo muito emocionado, posto que nunca havia participado de uma procissão em homenagem à Nossa Senhora dos Navegantes. Após, o cortejo retornou em direção à igreja, onde ocorreu a dispersão dos fiéis, momento em que retornaram às suas casas. Miguel, a passos vagarosos, caminhava em direção ao sobrado. Em sua mente, os acontecimentos eram rememorados como que se lhe passasse uma fita de cinema. Chegando no prédio, adentrou, caminhou pelo largo corredor e foi em direção aos fundos, à cozinha; solicitou à criada que lhe preparasse um café e o levasse à biblioteca, onde estaria. Lá, à beira da janela, onde o sol apresentava os primeiros raios sinalizando o fim do dia, o jovem seguiu a leitura dos Lusíadas, acompanhada de suas recordações daquela tarde distinta em sua vida...

*Ficção publicada originalmente na Coluna dos Defensores do Patrimônio Histórico de Arroio Grande, Jornal Correio do Sul, em 03.02.2017.

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