Por Elizandro Rodrigues
Após o almoço, Miguel
se retirou da mesa, subiu as escadas e foi para a biblioteca, a fim de
descansar acompanhado de uma boa leitura. Era Dia de Nossa Senhora dos
Navegantes e ele estava de férias no Arroio Grande, no sobrado de sua família,
em razão do recesso da Faculdade de Direito na capital. O início da tarde,
naquele dia, apresentava um precoce frescor de outono, demonstrando que o verão,
contrariando as previsões, despedir-se-ia mais cedo. Apesar disso, o sol
brilhava, acompanhado de um azul celeste bastante acentuado. Uma nuvem sequer
havia para que fizesse sombra sobre estas terras de paz. Aliás, muito raramente
costuma chover nesta região na ocorrência desta data. Sentado à beira da
janela, o jovem apreciava a leitura de “Os Lusíadas”, de Luís de Camões;
naquele momento, estava a ler o 4º Canto da obra do escritor português, no
momento em que ele descreve os preparativos para a partida de Vasco da Gama
desde a Praia de Belém e o choro e lamento daqueles que ficavam e assistiam a
partida das naus rumo ao mar impiedoso. Atônito, Miguel buscou o marca-páginas
na mesa de apoio, fechou o livro e viajou em seus pensamentos. Olhando pela
janela, começou a associar os acontecimentos narrados por Camões com a
conhecida religiosidade dos portugueses, trazida para estas terras com os
colonizadores. Apesar de ser conhecedor da devoção das pessoas à protetora dos
que se aventuram nas águas, veio à sua mente uma comoção repentina.
Interrompido de seus pensamentos, ouviu uma movimentação vinda da rua. Era
aproximadamente três horas da tarde quando o jovem descia as escadas, ao mesmo
tempo em que vestia o paletó, indo na direção do portal do sobrado. Parado nos
degraus de mármore da entrada do prédio, observou o aglomerado de pessoas que
vinham pela rua caminhando em direção à Matriz: era a procissão de Nossa
Senhora dos Navegantes. Aqueles que vinham na frente carregavam a estátua de
Nossa Senhora envolta em um manto azul-marinho, posta dentro da miniatura de um
barco de madeira. Quatro eram os fiéis que a carregavam. Os demais integrantes
da procissão vinham atrás daqueles primeiros, carregando consigo uma vela acesa
em uma das mãos e o terço enrolado ao pulso, enquanto que na outra mão traziam
ramos de flores. Em coro, cantavam em tom de voz médio liturgias alusivas à
data que ora se comemorava. Um sentimento diferente tomou conta de Miguel, que,
ao ver se aproximar a procissão – a qual passou em frente à sua casa, uma vez
que esta se localizava na rua que se dirigia à Matriz –, juntou-se aos demais
fiéis e os seguiu no cortejo à padroeira dos que navegam. Da Matriz, acompanhados
do padre – que naquele momento a eles havia se juntado – os fiéis se dirigiram à
ponte e, consequentemente, ao arroio. À beira das águas, o padre proferiu um
sermão seguido de orações, aos quais os fiéis ouviam atentamente. Foi então o
momento em que se repousou a pequena embarcação com a estátua de Nossa Senhora
nas águas: os quatro fiéis dela ficaram próximos, uma vez que a protetora
retornaria em procissão à igreja. Enquanto isso, os demais faziam seus pedidos
e suas orações às margens do arroio, largando os ramos de flores em seu leito,
como que em agradecimento à proteção ora concedida pela padroeira das águas. O
jovem assistia a tudo muito emocionado, posto que nunca havia participado de uma
procissão em homenagem à Nossa Senhora dos Navegantes. Após, o cortejo retornou
em direção à igreja, onde ocorreu a dispersão dos fiéis, momento em que
retornaram às suas casas. Miguel, a passos vagarosos, caminhava em direção ao
sobrado. Em sua mente, os acontecimentos eram rememorados como que se lhe
passasse uma fita de cinema. Chegando no prédio, adentrou, caminhou pelo largo
corredor e foi em direção aos fundos, à cozinha; solicitou à criada que lhe
preparasse um café e o levasse à biblioteca, onde estaria. Lá, à beira da
janela, onde o sol apresentava os primeiros raios sinalizando o fim do dia, o
jovem seguiu a leitura dos Lusíadas, acompanhada de suas recordações daquela
tarde distinta em sua vida...
*Ficção publicada originalmente na Coluna dos Defensores do Patrimônio Histórico de Arroio Grande, Jornal Correio do Sul, em 03.02.2017.
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