sábado, 31 de agosto de 2013

Afinal: O Que é "Cultura Urbana"?

Olá. Certo tempo atrás, tive uma disciplina na pós-graduação que se intitulava “Cultura Urbana”. Nela, procurava-se problematizar sobre o tema, por meio de uma perspectiva antropológica. Através das reflexões teóricas estabelecidas durante o curso das aulas, obtivemos uma base para observar este fenômeno, proporcionada por discussões voltadas para a organização espacial da cidade, as trocas culturais e a sua importância no fenômeno urbano e a ideia de cidade e de cultura que se tem atualmente, discussões estas imbricadas em prol de proporcionar ao indivíduo a possibilidade de identificar e extrair do espaço urbano as relações culturais que possui. Dessa maneira, o indivíduo imbuído na tarefa de estudá-la terá maior conhecimento de como ocorre seu processo de formação no espaço da urbem, dado o fato de a cultura ser também uma manifestação antropológica.
 
Identidade urbana: Será mesmo esta?
Dada a disciplina, todos nós, alunos da especialização, dotamo-nos com os instrumentos teóricos capazes de observar o fenômeno cultural na urbem através do olhar antropológico. Sendo assim, ainda ficava presente (como ainda está) e era debatido frequentemente, à medida que se realizavam leituras teóricas, os seguintes questionamentos: O que vem a ser “cultura urbana”? Como defini-la? Classificá-la? Identificá-la? A resposta, é claro, carece de reflexões. E, como é de se esperar, não é única e definitiva, dado o fato de a esfera da cultura, em todos os seus âmbitos, estar em constante movimento.

Sendo assim, no intuito de buscar uma resposta para tais questões, dediquei-me a pesquisar e escrever esta postagem. Fiz uma busca por elementos culturais que pudessem resultar, apenas e unicamente, de uma produção oriunda no espaço urbano. Inicialmente, realizei uma pesquisa de imagens na Internet, utilizando como termo de pesquisa as palavras-chave “cultura urbana”. O extrato desta pesquisa segue descrito abaixo, creio, ser muito interessante.
 
 
A imagem acima, como se pode perceber, retrata uma coleção de calçados da Nike, empresa multinacional. Reparem no traçado das peças, todas seguindo o mesmo padrão, diferindo-se umas das outras pelas suas cores. A presença deste elemento remete aos mecanismos de consumo, à globalização, dada a amplitude de lugares onde se pode encontrar calçados desta marca; estipula também um padrão a ser seguido, estimulando, através de estratégias de design e marketing, o uso de uma determinada marca de calçados pelas pessoas e, de forma complementar, fomentando nelas a formação do gosto. Percebemos, assim, a cultura sendo utilizada como suporte de reprodução social (neste caso, fazemos empréstimos do conceito do sociólogo Pierre Bourdieu para explicar este fenômeno), visto que, dado o fato da origem da produção de tais elementos ser realizada no espaço urbano, prolifera-se através das estratégias descritas acima, criando, assim, uma padrão, um modelo, uma identidade; alusão a esta imagem pode ser feita a célebre obra do artista plástico Andy Wharol, no momento em que reproduz o retrato de Marylin Monroe, lado a lado, alterando-lhe o tingimento das cores.



Esta foto, durante a pesquisa, foi a que mais me chamou a atenção. Nela, vemos um menino pobre, com seu rosto emoldurado por uma velha armação de um quadro, sendo retratado pelas lentes de uma câmera fotográfica. A leitura que faço dela é a de que o sujeito, sendo ele parte da urbem (e por assim dizer de seu complexo mecanismo cultural), faz de si próprio a representação da arte, retratada e enfatizada pela busca de um reconhecimento identitário, posto que, dada a situação exclusão em que se encontra na foto, vê, através de uma velha armação de um quadro, a possibilidade de se autorretratar e se autoafirmar como sujeito pertencente à dinâmica cultural urbana, mesmo estando à margem desta. Vê-se, ao mesmo tempo, uma crítica ao sistema atual, em que é enfatizada a desigualdade social, e uma tentativa de inclusão do sujeito marginalizado no circuito da cultura. Chama-se atenção, ainda, para o fato de a imagem encontrar-se em preto-e-branco, fato do qual podem ser realizadas outras leituras desta, como, por exemplo, a de sublinhar a realidade que é apresentada.
 





 
As imagens acima apresentadas retratam uma prática muito difundida nos grandes centros urbanos: o grafite. Nelas, misturam-se elementos estéticos que retratam a realidade que o sujeito autor está a visualizar em seu entorno. O “grafite” (ou “grafito”), palavra originada do italiano graffiti, plural de graffito, era o nome dado às inscrições feitas em paredes, no Império Romano. Esta prática, como podemos historicamente perceber, é realizada até os dias atuais. Considera-se grafite uma inscrição caligrafada ou um desenho pintado ou gravado sobre um suporte que não é normalmente previsto para esta finalidade. Por muito tempo visto como um assunto irrelevante ou mera contravenção, atualmente o grafite já é considerado como forma de expressão incluída no âmbito das artes visuais, mais especificamente, da street art ou arte urbana - em que o artista aproveita os espaços públicos, criando uma linguagem intencional para interferir na cidade. Entretanto ainda há quem não concorde, equiparando o grafite à pichação. Grafitar prédios públicos ou privados, sem autorização dos respectivos proprietários, é uma atividade proibida por lei em vários países.

 


Nesta foto, temos uma apresentação de um espetáculo circence, na qual os artistas apresentam-se fantasiados, em meio à prática de um número acrobático e coreográfico. Nota-se, ao fundo, na parte superior, que tal apresentação é realizada com a participação do que aparenta ser uma banda de rock n’ roll, dada as vestimentas dos componentes da banda e os instrumentos musicais utilizados. Sendo assim, é visível um diálogo entre segmentos/escalões da produção cultural realizada no espaço urbano (dada a origem da formação de ambas práticas citadas – rock e circo). A realização destas duas práticas em conjunto caracteriza um movimento que vem sendo percebido no âmbito da crítica nos últimos anos – a hibridez cultural. Um dos precursores desta temática é o antropólogo argentino Néstor García Canclini, em seu livro “Culturas Híbridas – Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade”, ele admite uma possível ruptura entre a tradição e o moderno. Com isso, o autor entende a hibridez como resultado dos “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas”. O autor nos chama a atenção para o fato de que as estruturas discretas designadas por ele “foram resultado de hibridações, razão pela qual não podem ser consideradas fontes puras” (CANCLINI, 2008, p. XIX).

A seguir, outro elemento cultural pesquisado. Nele, traz-se a ótica da cultura para a produção musical brasileira. O vídeo a seguir consiste em uma música da banda “Capital Inicial”, produzida na década de 1980, intitulada “Música Urbana”. Procurem perceber a letra desta música. Terá ela uma associação com a primeira imagem desta postagem, acima apresentada? As respostas são (serão) múltiplas.

 

 
Acima, uma das imagens encontradas na internet, através da pesquisa “cultura urbana”, em que é retratada uma pintura em tela. Nela, é possível extrair a reprodução de elementos oriundos tanto da cidade quanto do campo. Estará a produção cultural urbana imbricada nas tensões entre rural e urbano ainda existentes? Fica em aberto o questionamento.

Além de Néstor García Canclini, acima apresentado, outros autores problematizam conceitos que podem ser voltados para a temática em discussão neste post. A seguir, cito alguns deles.


O primeiro autor a ser pensado é Roberto Damatta. Em seu livro “Relativizando: Uma Introdução à Antropologia Social”, mais especificamente no texto “A Antropologia no Quadro das Ciências”, o autor visa situar a antropologia no panorama científico. Para realizar tal empreitada teórica, ele busca primeiramente estabelecer uma relação e uma diferenciação entre as ciências “naturais” e as “sociais”. Nesta, o autor nos mostra que a diferença básica entre tais ciências é a possibilidade de repetição dos eventos naturais, que possibilitam determinadas condições de controle; fato que não é verificado nas ciências sociais. Entretanto, há uma diferença que o autor julga crucial: “nas ciências sociais pretendemos estudar fenômenos que estão bem perto de nós, pois pretendemos estudar eventos humanos, fatos que nos pertencem integralmente”. Este texto serve de referência básica para quem possuir o intuito de observar o fenômeno da cultura através da perspectiva antropológica.

 
Outro autor de grande importância a ser observado é Giulio Carlo Argan, historiador e teórico da arte italiano e ex-prefeito de Roma. Em seu livro “História da Arte como História da Cidade”, é reafirmada a identidade entre a cidade e a arte. Em seus escritos ele propõe uma metodologia que parta da definição da história da arte como história de uma fenomenologia complexa de objetos produzidos a partir da tecnologia do artesanato e constitua uma dimensão espácio-temporal que é a própria cidade; fica assim superada a tradicional proposição sociológica baseada na aproximação entre os fatos históricos - civil, político, econômico, etc. - e os fatos histórico-artísticos dependentes daqueles. Dá-se ênfase para dois capítulos: “Cidade Ideal e Cidade Real”, em que Argan estabelece uma relação entre a arte e o renascimento. Ele explica que na época do renascimento surgiu a concepção de “cidade ideal”, a qual deveria ser arquitetada por um único profissional, como se esta constituísse uma obra de arte. Porém, a cidade ideal também é tratada pelo autor como um módulo, que é mutável, porém sua essência permanece a mesma. Outro capítulo enfatizado é “O Espaço Visual da Cidade”, em que o autor define o urbanismo como uma "disciplina que visa interpretar, estabelecer, reorganizar e finalmente programar para o futuro a conformação da cidade" (2005, p. 225). Para Argan, o urbanismo é delimitado como programação e projeto, baseado em dados estéticos, econômicos, políticos, científicos e tecnológicos, sendo que dessa forma não se sabe precisar a que área do conhecimento ele pertence.
 

Outros dois textos de relavada importância para refletir acerca da cultura urbana são “A Metrópole e a Vida Mental”, de Georg Simmel e “O Urbanismo como Modo de Vida”, de Louis Wirth, publicados no livro “O Fenômeno Urbano”, de Otávio Guilherme Velho. No primeiro texto, Georg Simmel, através da comparação entre o meio rural e o urbano, vai nos mostrar como os indivíduos se preservam psicologicamente diante da overdose de estímulos que a vida metropolitana proporciona. Nela, apresenta a metrópole com uma heterogeneidade, a especialização, divisão social do trabalho, com as relações sociais vinculadas ao modo de produção, de modo às relações secundárias serem marcadas pela impessoalidade. Já o campo marcado pela homogeneidade, é caracterizado por uma menor divisão do trabalho, com suas relações sociais estruturadas nas relações de parentesco, primária e com pessoalidade. No segundo texto, Louis Wirth apresenta uma definição sociológica de cidade, fundamentada nas relações entre a quantidade, densidade e relativa permanência da população e a heterogeneidade dos habitantes da cidade. A partir dos postulados implícitos no conceito de cidade, o autor propõe a formulação de hipóteses acerca das formas de organização social e de ação características da vida urbana, visando a construção de um corpo teórico da sociologia urbana por meio de sucessivas elaborações teóricas e aplicação de pesquisas empíricas.

 
No decorrer deste post, foi apresentada uma pesquisa acerca do que vem a ser cultura urbana, no intuito de buscar respostas aos questionamentos apresentados. Buscou-se apresentar na pesquisa vários segmentos culturais, objetivando a amplitude de visões necessária para promover a visualização deste complexo que é o fenômeno urbano. Sendo assim, foram apresentadas diversas manifestações culturais, sendo elas aqui representadas pela pintura, pelo grafite, pela música, pela coreografia, pela fotografia, através de diferentes mecanismos de divulgação. Realizada a apresentação deste extrato da pesquisa, apresentou-se algumas indicações de livros e autores que colaboram para que se possa reflexionar, com melhor lucidez, a respeito da presença cultural no espaço urbano. Portanto, esta discussão não termina aqui, ela segue...
 

Proponho, então, meu olhar a respeito do que vem a ser “cultura urbana”, embasado no que foi apresentado acima. A meu ver, antes de pensarmos a cultura pelo viés urbano, temos de perceber o que vem a ser urbano, o que para nós representa a urbanidade. Tendo elucidada estas concepções, poderemos, então, compreender o que vem a ser cultura urbana. Ela está presente em nosso modo de perceber o mundo, o entorno e as relações sociais do espaço em que vivemos. Penso que a partir do momento em que nos situamos neste espaço como sujeitos ativos e dinâmicos no processo contínuo de produção cultural, adquirimos clareza e consciência desses mecanismos.

 
Até a próxima! J

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