Nádia Costa Botelho das Neves**
No romance “Os limites do impossível – contos
gardelianos”, do autor Aldyr Garcia Schlee, há a representação das “mulheres que amam” o personagem Carlos
Escayola. São elas Juana, Rosaura, Manuela, Felícia, Berta e La Madorell,
mulheres que foram capazes de se desviarem moral e socialmente, demonstrando comportamentos
contrários aos padrões da sociedade da época, tudo para terem a atenção e o
amor do protagonista. Essas mulheres, ao transgredirem o comportamento social, esperado
pela cultura patriarcal, demonstram que valorizam mais seus sentimentos do que
as convenções. O amor a Carlos Escayola é confundido algumas vezes com prazer,
luxúria ou simplesmente a sublimidade contida neste sentimento.
As personagens
femininas não se restringem ao ambiente interno da casa, elas demonstram seus
sentimentos como desejo, amor, ira, etc; também no espaço público, território
masculino, onde a política, a luta e os vícios são permitidos. Tal
comportamento indica a atualidade das narrativas, pois apesar da trama ocorrer
na passagem do século XIX para o XX, as dores e os amores das mulheres é que
estão no centro do romance. Essa atualidade fica evidente porque ao denunciar o
modo como àquela sociedade lidava com as mulheres, entendemos um olhar
contemporâneo, momento no qual a sociedade está mais aberta para discutir os
direitos femininos.
Assim, teremos um
enredo que contempla os desejos, os amores, as amizades; enfim, as emoções femininas
que na época eram abafadas pela comunidade. É o caso de Juana, a mulher mais
velha, com 36 anos de idade, apresenta-se tendo duas filhas em idade casadoira.
Ao conhecer Carlos, ainda moço e recém-chegado à Vila de San Fructuoso, com aproximadamente
21 anos de idade, ela percebe logo seu caráter. Era casada com Tano e, por
isso, se sujeitou a oferecer sua própria filha em matrimônio para manter o
relacionamento com o moço garboso e viril. Apesar de tal atitude, o conquistador
a relega ao segundo plano. Mesmo casando-se com Clara, a primogênita de Juana e
Tano, Carlos mantinha seu interesse em outras conquistas.
O relacionamento
incestuoso com Juana, sua sogra, resultou no nascimento de Maria Lélia ou La
Niña. Entretanto, para a sociedade em geral, bem como para a família, a menina
era fruto da união legítima de Juana e Tano, tanto que o genro, Carlos Escayola,
tornara-se padrinho da menina.
O romance demonstra que
Escayola não conseguia sequer ser fiel à sua esposa e à sua amante, pois não
permanecia muito tempo com a mesma mulher. Com a morte de Clara, Juana não
consegue mantê-lo por perto. Ele se afasta da sogra e segue viagem com uma nova
parceira, Rosaura, moça que retirou de um circo equestre.
As lembranças vêm a
Juana como num flashback. O desejo latente por um homem que não era seu marido a
levou a cometer desatinos em nome de um amor passageiro, que deixou apenas
marcas profundas de destruição na vida de seus familiares. Ela usou todos os
ardis possíveis para conquistá-lo; por esta paixão desvairada, Juana obriga a
própria filha Clara a casar com Carlos para que ele pudesse estar ao seu lado,
para não perdê-lo. No entanto, não consegue controlar suas emoções e chega a
odiar sua filha por possuir aquele a quem ama. Juana sente-se perdida porque
Carlos não vive com ela e para ela, e ninguém pode saber o que a criança
representa em suas vidas. O seu desvio de conduta pesa de tal forma sobre ela
que acaba enlouquecendo lentamente, cega pela raiva e pela dor de não poder
revelar ao mundo o seu verdadeiro amor. Juana acaba sem Carlos e sem a filha, o
que reforça mais a sua instabilidade, tornando-a lentamente cada vez mais
louca.
Se Juana perde sua
lucidez, Rosaura perde sua alegria e liberdade. A jovem sorridente trabalhava
no circo equestre, que tinha chegado à cidade de San Fructuoso. Era uma moça de
gestos largos, vestida com roupas insinuantes que mais mostravam do que
escondiam o seu corpo. Seu trabalho, de pouco valor, pois se limitava a segurar
a corda presa ao buçal do cavalo, lhe permitia conhecer vários lugares e não
fixar raízes. Essa liberdade acaba quando resolve viver com Carlos, que havia
recentemente ficado viúvo e com duas filhas pequenas, as quais deixou aos
cuidados da cunhada, Blanca. O casal viajou e Rosaura o acompanhou como se
fosse sua mulher e no percurso foi feliz, inclusive recebendo presentes
valiosos, como uma petaca de veludo
bordada em ouro, que no princípio estava vazia, mas que a cada dia da viagem
Carlos lhe presenteava com uma pedrinha de ouro, lembrança dos dias inesquecíveis.
O idílio que foi a
longa viagem ao extremo da fronteira ainda perdura em Rosaura, enquanto ela se
instala na casa luxuosa de veraneio em San Gregório. Nessa casa, ela ficaria a
espera de Carlos, passando-se por caseira. Isso já pode ser visto como uma
perda, na medida em que não era reconhecida como esposa; porém, a perda é maior
porque ela passa a ser insignificante para Escayola. A carta que recebe de Carlos deixa evidente sua
posição de desnecessária, pois na missiva descobre que ele havia casado com
Blanca, irmã de sua finada esposa.
Em detrimento da
manutenção da unidade familiar, Carlos trocou o amor de Rosaura pela sua
cunhada. Apesar disso, o sentimento de Rosaura ainda sobrevive, mesmo quando
descobre tardiamente que ele havia seduzido La Niña, sua “afilhada”. As
atitudes insensíveis e cruéis de Carlos não diminuem a afeição que ela sente e,
inclusive, aceita o encargo de cuidar de Maria Lélia.
A moça que outrora era
sorridente e que por um curto espaço de tempo foi feliz ao lado de Carlos, por
amor foi capaz de abandonar seus sonhos, sua profissão, sua liberdade; submeter-se
a caseira e ama; esconder seus sentimentos, pois nem seus amigos mais próximos sabiam
de seu relacionamento com Escayola; enfim, tornar-se como uma viúva resignada a
esperar o milagre do retorno de seu homem – que acontecia quando ele queria e
podia – o que era raro.
As mulheres que amam
Carlos são diferentes em vários aspectos: idade, situação financeira, cor, posição
social e religião. Juana e Rosaura eram mulheres fortes que dominavam suas
vidas, mas que não conseguiram dominar seus sentimentos. Manuela e Felícia eram
inferiores socialmente, pois eram empregadas e ambas também sofreram por suas
escolhas.
Manuela tinha quinze anos de idade quando sua mãe e seu pai
foram trabalhar na estância Santa Blanca. Apesar de sua mãe a vigiar e a
prevenir para que não se aproximasse do dono da estância, pois era homem que se
metia com as mulheres por bem ou por mal, isso a incitou a aguardar com
sobressalto pela chegada de Carlos. Ela vivia imaginando como seria aquele
homem. Manuela se envergonha quando é notada por ele, pois o achou bonito. Ele
a tratava bem, sabia o nome de seus pais, era alegre e contagiava a todos.
Manuela entregou-se sem medo, pois via nele o homem que despertava nela os
segredos do amor e do desejo e sentia-se amada e valorizada pelo modo que era
tratada.
Sua entrega a Carlos foi por vontade própria,
seu amor era desmedido mesmo sabendo das atitudes pouco convencionais do seu
amante. Apesar de castigada pelos pais, mantinha o sentimento. Somente Carlos a
possuía, para outros conservava sua postura virginal, intocável. Manuela era
diferente, mesmo com corpo de mulher, não lhe davam a idade precisa, ela
guardava a pureza de criança, a pureza de donzela; não encorajava ninguém, não
levantava os olhos, ignorava a todos.
Distinta de Juana e
Rosaura, Manuela nunca se iludiu, não se sentia desonrada, não ignorava que
Carlos era casado e tinha três filhos com Blanca, além das duas filhas do
primeiro casamento, e os outros tantos fora. Quando ela perde seus pais, o
coronel leva-a para a casa da fazenda. Fica na estância comandando, como se
fosse dona, apesar de jamais ter se interessado em sê-lo, afinal, ela queria
apenas ele.
Manuela não tinha nem a
rigidez moral de Juana e nem o sonho de liberdade de Rosaura, por isso cuida e
trata tanto de La Niña como do seu filho com Carlos que nascera. Não pede
explicação, somente acata o pedido do coronel feito por carta. Manuela trata o
bebê como se fosse seu filho pelos três primeiros anos e, quando ambos já
estavam apegados, a criança é levada por Berta, uma corista de cabaré, para
Buenos Aires.
Manuela representa
aquela que não tinha nada a perder, tanto por sua situação social como pela sua
forma de pensar, mas mesmo assim, Carlos consegue causar nela o sentido da
perda. Manuela era estéril e a afeição com a criança supria seu anseio pela
maternidade. Ela nunca pediu a Carlos mais do que ele pudesse lhe oferecer,
jamais fez cobranças ou perguntas, aceitou como suas as decisões e pensamentos
dele, como se ambos de fato fossem um só ser, conscientes das vontades e
desejos um do outro. Ela manteve-se íntegra em suas convicções, em seus
desejos. Tinha claro que não poderia possuir o amor de Carlos, mas poderia ter
sido mãe, mesmo de um filho incestuoso.
Manuela nada precisou
fazer para despertar a atenção do patrão. Ao contrário, seus pais diminuíram
sua idade como forma de proteção, para passar despercebida aos olhos de Carlos.
Porém seu corpo adolescente mostra a verdade. Felícia, pelo contrário, possui o
desejo pelo “patrãozinho” e usa dos rituais primitivos de sua religião para que
ele a perceba.
Felícia é mucama negra, magra, ágil e sempre vestida de
branco, da saia até o pano enrolado na cabeça. Ela é jovem, faceira, perfumada e
obediente. É a primeira a levantar todas as manhãs para esperar o leiteiro e o
aguateiro. Ela sabe de tudo que se passa na casa e tenta contar a sua mãe, que
não acredita nas suas histórias. É através
do amplo passadiço da casa que Felícia percebe as relações de Carlos com as
várias mulheres da casa:
“- Sabes que
Clarita (sim, nha Clarita, a patroninha Clara, doña Clara), recém antes de
casar-se com o patrãozinho (sim, siô Carlos, o patrão don Carlos), a patroa
doña Clara, sendo ainda moça solteira e sem ao menos imaginar que ia casar-se
com o patrão don Carlos, ela levantava
bem cedo, de manhã(eu via), ela corria
todas as manhãs até a porta (eu via), ela levantava bem cedo e corria todas
manhãs a esperar (eu via), corria a esperar...”
“- Sabes que
Blanca (sim, nhá Blanca, a patroninha sinhá Blanca), antes de casarem doña
Clara com o patrãozinho (sim, siô Carlos, o patrão Don Carlos), a patroninha
doña Blanca, quando ainda nem se sabia que iam casar doña Clara com o patrão
Don Carlos, quando doña Clara também era solteira, moça solteira, moça donzela
como ela e como eu... admirava-o.”
“- Pois sabes
que a patrona velha (sim, siá Juana, a patrona doña Juana do patrão velho),
desde antes de se casar o patrãozinho (sim, siô Carlos, o patrão Don Carlos)
com a patroninha Clarita (sim, a patroa doña Clara), quando nosso serviço ainda
era todo só na casa dele; e, depois, até depois do casamento dele com doña
Clarita, agora, ele e ela, doña Juana (ele, Don Carlos; e ela, doña Juana) os dois...”
(SCHLEE, 2009, p. 33-34).
A passagem acima demonstra que a mucama foi
testemunha dos encontros clandestinos de “sinhá” Juana com Carlos e da paixão
de Clara pelo tambeiro. Ela é expectadora silenciosa do que ocorre dentro das
paredes da casa grande da família, dos dois lares geminados que se transformam
em um só e onde não há empecilhos para conquistas proibidas e desfechos. Para
Felícia, é um tormento e uma agonia não ter credibilidade, pois mesmo sua mãe não
acredita em suas histórias imprudentes e indecentes.
Ela vive entre a cólera
de não ter credibilidade e a indignação de não ser percebida. Felícia representa
a mulher insignificante, sem direito à liberdade e aos sonhos, sem direito a
constituir família; ela é a propriedade de um homem branco, rico, respeitado
pela sociedade. O seu jugo não será mais leve ao tornar-se amante do patrão,
pois pior que as outras, ela não terá a mínima atenção. O sentimento de
menosprezo a leva a se utilizar das práticas de magia (“vodu”) para que ele lhe
dê atenção.
Se Manuela e Felícia,
ambas subalternas, se utilizam de estratégias distintas para angariar a atenção
do patrão, uma através do corpo e outra através da magia, Berta, também
subalterna, se diferencia delas por conquistá-lo pelo atrevimento e por sua falta
de pudor.
De origem francesa,
Berta era bonita, insinuante, atrevida e tinha em torno de dezoito anos. Ela
revelava altivez e certa arrogância, o que para as pessoas sugeria inoportuna.
Ela é descrita com movimentos invulgares e inusitados, com gestos excitantes e
perturbadores, com voz misteriosa e enigmática, com olhar coruscante e
insidioso.
Berta passará das
funções domésticas a protegida de Victor d’Olivier, engenheiro formado que
comandava a poderosa Compagnie Française
d’Or de L’Uruguai, e foi levada para a zona de mineração, passando a viver
com ele, que mandava despoticamente. Berta é um presente de Victor a Carlos,
que a leva para sua própria casa como lavadeira e engomadeira. Por sua
competência nos afazeres domésticos, Berta desperta o ciúme de Blanca, e, para
evitar brigas, Carlos leva-a para o cabaré “La Rosada”. Berta torna-se a
sensação do estabelecimento e ele, descontente com sua popularidade, tira-a de lá
e a instala em uma casa perto de onde reside.
Longe de seu convívio
de costume, Berta sofre pela angustiante espera, por mais de um ano, sem ter
com que se ocupar. A revolta por essa situação a leva a trair Carlos, que
descobre e faz com que ela retorne ao cabaré. Lá, colocada entre as coristas, é
a que mais se sobressai.
O desgosto de Berta, por voltar à antiga
situação, resulta-lhe a lucidez necessária para entender que está completamente
só, abandonada, triste, sem ter ninguém que de fato lhe aceite e a admire, ou
seja, sente-se desamparada. A jovem que antes era alegre, cheia de energia,
torna-se cansada, impotente e sujeita a conviver com homens estúpidos,
bazofeiros, velhos e impotentes. Perde a proteção de Carlos quando é mandada
embora, mas o coronel lhe entrega a Jorge, nome que deveria dar ao filho
incestuoso, que ele teve com a “afilhada”.
Berta carrega consigo o
valor de três mil pesos e a garantia de ajuda permanente, caso ela não fale
para ninguém sobre a criança. O menino, que recebe o nome de Carlos, era a
única segurança que ela possuía. A mulher que antes era autoconfiante agora tem
que construir sua vida sem a ajuda de ninguém. É essa pessoa que supostamente
foi mãe de Carlos Gardel.
Carlos Escayola usa as
mulheres e consegue tirar delas o que cada uma mais deseja. Assim como Juana,
Rosaura, Manuela e Felícia, Berta perde na relação com o coronel. Em seu caso é
a segurança, a esperança de poder envelhecer sob a proteção de alguém, o que
não ocorre, pois além de não conseguir um abrigo teve de cuidar do filho de
quem o abandonou.
Quem encontra a
proteção de Carlos é Pilar, que por seu turno desejava não a segurança, mas a
fama. Ela foi tratada como esposa, mãe, companheira e amiga; entretanto, o que
mais desejava não conseguiu. Pilar Madorell almejava ser uma grande estrela nos
palcos de teatro, mas foi apenas a substituta eventual, tanto nos palcos como
na vida de Carlos. Ela preencheu mais uma lacuna na vasta coleção de mulheres.
Para Pilar, esse homem representa o que jamais tivera, por isso sente-se
atraída e não se importa com o que dele falem.
Carlos a levava à
Capital nas casas de chás, confeitarias e salões de café-concerto. Assim como
Berta, que recebeu o que sonhava e depois perdeu, Pilar encontra nele o
parceiro que tinha forma e jeito de fazê-la sentir-se a mulher que sempre
quisera ser. As longas cartas que escrevia para justificar sua ausência indicam
o cuidado e carinho que Carlos tinha por ela. Essa atenção durou pouco tempo,
pois ela percebia o interesse dele pelas outras mulheres. O sonho de glamour de
Pilar termina quando o gentil general Santo sofre um atentado e escapa por
pouco da morte. Apesar do prestígio de Escayola desaparecer subitamente e Pilar
ampará-lo do falecimento de La Niña, ela não consegue conquistá-lo e continua
sendo apenas suplente. Ocorre que a perda da esposa desestabilizou o coronel,
que sempre comandou a situação.
Pilar vive o sonho de
Manuela porque é mãe dos filhos menores de Carlos, o sonho de Juana e Felícia,
pois é companheira de Escayola. Convivem juntos até 1911, porém não consegue
realizar seu sonho de ser atriz e de ser reconhecida. Pilar, assim como Juana, Rosaura,
Manuela, Felícia e Berta, sacrifica algo de sua vida em detrimento do amor de
Carlos; entretanto, nenhuma conquistou seus desejos e de um modo ou outro só
lhes resultou a solidão, a desilusão.
Elas transgrediram a
moral, perderam a liberdade e seus sonhos, deixaram-se levar pela paixão, pela
ilusão da felicidade junto a um homem que nunca se comprometeu de fato com
nenhuma delas, pois era inconstante. Só colheram desalentos, destruíram seus
casamentos, perderam o brilho dos palcos, o sucesso, bem como a juventude e a beleza,
tudo a espera de uma mudança que significasse a verdadeira felicidade, algo que
nunca aconteceu.
Referência Bibliográfica
SCHLEE, Aldyr Garcia. Os limites do impossível – Contos gardelianos. Porto Alegre:
ARdoTempo, 2009.
* Capítulo do Trabalho de Conclusão de Curso "Os Impossíveis Limites dos Sentimentos em 'Os Limites do Impossível'", apresentado ao Curso de Letras da Unipampa em 2013, gentilmente cedido pela autora para publicação no Blog.
** Graduada em Letras - Português/Espanhol e Respectivas Literaturas pela Unipampa - Jaguarão/RS.
Nenhum comentário:
Postar um comentário