A última edição da revista "Granta", a qual traz ensaios e textos inéditos de autores contemporâneos, Traz uma coletânea de textos de jovens escritores brasileiros. O Mundolivro (link aqui) fez uma série de reportagens entre 23 de julho e 14 de agosto deste amo, a qual é trazida aqui, a seguir. As postagens procuram analisar os textos trazidos nesta edição da revista. Boa Leitura!
"Encarando a Granta" - Parte I
Pois bem, a maioria dos votos computados nos dois dias de
nossa enquete informal defendeu a fragmentação do texto crítico sobre a Granta em
mais de um post - alguns foram bastante específicos, como o Samir Machado
de Machado, que sugeriu um conto por post. Mas acho que aí seriam 20 textos
que, com minha facilidade de ser prolixo, encheriam o saco de todo mundo, até o
meu. O único voto em favor de um texto único foi de peso, o da tradutora Denise
Bottmann, mas vamos seguir os ditames democráticos e dividir nossa resenha da
Granta em cinco textos abordando cada qual um bloco de quatro contos. No final,
considerações sobre o conjunto.
Antes de prosseguirmos, um punhado de esclarecimentos que
são redundantes mas, como eu conheço a internet bem o bastante, necessários:
1) Muito se tem falado, com a Granta como
pretexto, na questão da legitimidade e na autoridade de quem escolhe e
seleciona. Para estes textos, que fique bastante claro: as opiniões expressas
na resenha são minhas (de quem seriam?), e a legitimidade que eu tenho para
emití-las é a de alguém que efetivamente leu os textos (e que vem trabalhando
com o texto literário como matéria-prima há um bom tempo). Não gostou? É seu
direito. Não concorda? Mais direito ainda. Mas qualquer pergunta sobre
"quem é você para falar tal coisa" será respondida ao estilo Mario
Quintana: Sou eu, ué. Vale até para eventuais autores da lista.
2) Considerações extraliterárias sobre a relevância dos
autores ou não só aparecerão, se aparecerão, no último texto. Estou lendo o
livro como ele chegou até mim, com esses autores que estão ali. Vou ler o livro
que tenho em mãos em vez de o livro que eu supostamente acho que deveria ter
sido feito.
3) Full disclosure, dado que a Granta despertou
uma certa "paranoia do compadrio": embora mantenha, até como parte de
meu ofício de jornalista, relações e diálogos cordiais eventualmente com mais
de um autor incluso na coletânea (Daniel Galera, Michel Laub, Carol Bensimon e
Antonio Xerxenesky, por exemplo), não sou, felizmente neste caso, o que se
possa chamar de "amigo" de nenhum deles - a não ser na acepção que
o facebookdá para a palavra. Os demais, conheço por texto, falei uma ou
duas vezes na vida ou sequer sabia que existiam antes dos livros. Em
determinada época, Leandro Sarmatz e eu trabalhamos na redação
de Zero Hora no mesmo período, mas não tivemos o menor contato
naquele tempo. Chegamos a conversar posteriormente, por questão profissional,
mas só depois que ele deixou o jornal. Logo, não me sinto impedido ou
desconfortável para analisar honestamente a obra de nenhum deles.
Vamos aos primeiros textos da coletânea, que, já na ordem,
oferece um enigma ao leitor. Havia começado a ler o livro aleatoriamente, mas
uma pessoa com quem conversei me alertou para algo que no princípio não me
chamara particularmente a atenção: a própria ordem da coletãnea é uma
idiossincrasia dos organizadores, uma vez que os autores não estão dispostos em
sequência alfabética de nome, de sobrenome ou mesmo de título do conto. Resolvi
ir então para o início do livro e percorrê-lo do início ao fim para ver se essa
ordem descortina algo para mim.
Animais, de Michel Laub
A antologia abre com um texto que comprova que Laub, um dos
autores mais experientes do grupo, encontrou não apenas uma voz literária, mas
quem sabe uma forma para expressá-la. Nesta história, os animais de estimação
que o narrador em primeira pessoa teve na infância servem de pretexto para o
desdobramento de uma série de relações familiares e de convívio que expõem uma
natureza perturbadora sob uma superfície aparentemente pacata. Essa tensão de
uma brutalidade que irrompe em um cenário de domesticidade banal está expresso
já na primeira frase: "Quando eu tinha onze anos, em Porto Alegre, meu
cachorro Champion foi morto pelo dobermann do vizinho".
A estrutura parece decalcada diretamente do romance anterior
de Laub, Diário da Queda:capítulos breves e numerados que percorrem em
espiral o eixo do episódio central narrado na primeira frase, ora acrescentando
um detalhe a mais nos antecedentes e nas consequências da morte do cão, ora
espraiando-se em digressões que revelam uma relação complexa mas afetuosa entre
pai e filho (e relações entre país e filhos vem sendo um mote recorrente na
ficção do autor). A presença de um segredo ligado aos elementos mais sombrios
da psique do narrador, que era uma das pedras de toque de O Diário da
Queda, está presente também neste texto, bem como o fato de a história se
construir como uma recordação de um momento definidor no passado, o que o autor
também fez em Longe da Água e O Segundo Tempo.
Estilisticamente, Laub vem se tornando, livro a livro, um
craque na arte da negaça, o que parece atingir um "ponto ótimo" neste
conto: suas frases longas vão se sucedendo como peças periféricas em um
quebra-cabeça cuja imagem crucial (e desconcertante, ainda que sutil) só será
expressa nos últimos segmentos. O autor domina a frase de modo elegante,
alternando sentenças secas e sincopadas com orações que se encadeiam com
habilidade e nas quais o leitor não se perde mesmo naquelas mais tortuosas que
avançam por mais de um plano narrativo:
"O retrato no túmulo do meu pai é de quando ele tinha
uns sessenta, e o sorriso é bastante típico dele, mas quando estou sozinho e
tento lembrar não é uma pose específica que me vem à cabeça, nem a voz dele,
porque as pessoas mudam de voz com a idade e nos últimos doze anos da vida dele
tivemosmais conversas por telefone do que ao vivo."
Por trabalhar na concisão do conto com a reiteração de temas
e formas com que Laub já havia lidado em obras anteriores, Animais aparece
como uma espécie de síntese do trabalho do escritor até aqui. E por ser o
primeiro da coletânea, o uso que o autor faz da metaficção acaba se revelando
um cartão de visitas para boa parte dos textos. O narrador é um escritor, e se
refere a episódios e personagens de seus livros - e essas referências são
retiradas diretamente de livros anteriores do próprio Laub, ajudando a borrar
as fronteiras entre personagem e autor. Não é a primeira vez que Laub usa tal
recurso, embora em outros livros ele não tenha sido tão explícito. É a primeira
vez que esse recurso aparece em um conto da coletânea, mas acreditem em mim
quando digo que não será a última.
Aquele Vento na Praça, de Laura Erber
Como eu havia comentado no post sobre os autores, eu
já havia ouvido falar de Laura Erber de nome, mas não conhecia sua
produção literária - até este momento dedicada à poesia. Sabia que era artista
plástica, e essa origem fica clara neste conto, um relato no qual um artista
plástico é contratado para visitar Bucareste, na Romênia, para recolher algumas
obras não catalogadas de um artista anglo-romeno chamado Paul Neagu (que
eu não sabia que existira de fato, confesso, fui ajudado nisso pelo Google)
e lá encontra uma jovem pela qual se encanta - ela é filha do homem que ele foi
encontrar, um antigo amigo de Neagu que mantém sob guarda trabalhos do artista
censurados pelo regime deCeausescu. A sinopse pode dar a entender uma história
romântica banal, mas o conto não é isso, Laura constrói uma atmosfera elusiva e
estranha por onde o artista se movimenta um tanto confuso e muitas vezes a
contragosto.
Gosto de obras que dialogam com o universo das artes
plásticas, coisas fantásticas já foram feitas com esse mote e esse contato. A
epifania de Bergotte diante do detalhe de um muro amarelo em um
quadro de Vermeer em A Prisioneira, de Marcel Proust; o
pintor enlouquecido que expõe a própria mão amputada em uma passagem de 2066,
de Roberto Bolaño; as plásticas descrições das obras fictícias de William
Wechsler em O Que eu Amava, de Siri Hustvedt; a maneira
como John Updike pula do romance à crítica de arte e de volta ao
romance em Busca o Meu Rosto, etc, etc.
Talvez essa enumeração comparativa seja injusta com Laura
Erber e seu texto de extensão bem mais curta, mas percebe-se na autora a
motivação consciente de mergulhar o leitor no universo artístico, referência
primordial da história, e em sua relação com a literatura usando metáforas e
imagens que a todo momento remetem a outras formas de expressão artística.
Incluem-se aí comparações visuais ou alusivas ao universo da pintura ("os
cabelos mais perfumados do leste, os caravaggiescos cabelos de Martina Ptyx"),
referências literárias (o velho Ptyx com quem o protagonista foi falar na
Romênia dedica-se a copiar, à mão, palavra por palavra, à Pierre Menard, os
romances de Balzac) e ao universo pop e à mídia ("A única coisa que eu
sabia sobre o Cáucaso, além dos genocídios, vinha de uma canção de Loreena
MacKennitt que falava de uma cavalgada noturna entre relâmpagos, árvores
silenciosas e lua"). Claro que a fronteira entre esse tipo de construção
imagética e o puro e simples namedropping que busca justificar-se com
recorrências externas é tênue, e às vezes ela a ultrapassa com resultados
desastrosos:
"Havia um estranho magnetismo naquela moça, e não era a
beleza, ou não era só a beleza, ela parecia ter saído diretamente de uma novela
de Franz Hellens. Como se a qualquer momento fosse começar a dançar no meio das
beterrabas, os agriultores formariam um coro em círculo e a realidade se
converteria na realidade de um show de Diamanta Galás dirigido por Lars Von
Trier."
Esse registro da prosa, algo afetado, tende a cansar. Também
acho estranho que um conto, logo um ordenamento literário de situações e
efeitos, bata tanto, como este faz, na tecla da falta de significação - a
inexistência a priori de uma "rede de significação" na
realidade é um clichê contra o qual rebelar-se literariamente é difícil, pois
como acusar a falta de uma rede de significação com uma peça artística,
construção ela própria de uma rede de significados?
Antes da Queda, de J.P. Cuenca
O texto apresentado por Cuenca para a antologia é o
fragmento de um romance (outros autores fizeram o mesmo), e portanto, embora
aqui se apresente como uma peça a ser analisada por si só, provavelmente será
alterada e, em muitos casos, terá até mesmo sua qualidade reavaliada quando
fizer parte de um conjunto maior no romance. Não vou apontar, portanto, como um
defeito que tais textos por vezes não pareçam íntegros, não tenham autonomia ou
não ofereçam a vertigem ou a unidade de efeito de um conto. Isso já está claro
desde o início. Mas neste fragmento em particular, terminei com a sensação
amarga de ver uma ideia muito boa e original sucumbir à deficiência dos
recursos em que é expressa. Cuenca narra, em uma terceira pessoa que se mistura
epidermicamente com a psique e com as opiniões do personagem, a trajetória de
um homem que decide deixar o Rio de Janeiro depois de tê-lo visto passar por um
renascimento urbano que, como sempre ocorreu no Brasil, privilegia uma classe
de favorecidos em detrimento de uma massa de desvalidos. Há um tom de ficção
científica distópica: por meio desse personagem Cuenca leva às últimas e
desastrosas consequências o surto de desenvolvimentismo que o Brasil vive hoje,
imaginando como seria reavaliar no futuro o atual momento se tudo descer outra
vez ralo abaixo. Para isso, parte de eventos reais recentes e reimagina suas
consequências até um ponto não especificamente mapeado no futuro. Para dar só
um exemplo: a pacificação das favelas com o exército torna os espaços nos
morros ambientes atraentes para uma classe artística e boêmia que começa a
ocupar a região, revitalizando-a. Isso, ao mesmo tempo, encarece os aluguéis
obrigando os moradores originais a se mudarem para subúrbios distantes.
Uma ideia fantástica (em mais de um sentido) e pouco usual
em nossa literatura voltada mais para o presente e para a subjetividade de
protagonistas urbanos. Mas tem um problema aí: Cuenca estrutura o texto em
frases imensamente longas que perdem ritmo ou recorrem a uma profusão de
preposições, conjunções e pronomes, nem sempre apropriados, verdadeiras pedras
jogadas no caminho do leitor. Contemos, por exemplo, o número de
"quês" apenas no primeiro parágrafo do conto:
"Jamais cometeu a indiscrição de admitir,
principalmente a si mesmo, o medo que seu desejo de abandonar a
cidade fosse recíproco - que ela desejasse abandoná-lo também. Ir
embora por vontade própria seria bastante diferente do que ser
expulso, do que capitular cabisbaixo frente a um adversário medíocre,
ou, pior, do que ser visto como alguém em fuga. Até que ponto
renunciar à terra natal não seria fruto de uma rejeição dos seus? É possível
fugir sem ser covarde? Quaisquer que fossem as respostas, as próprias
interrogações eram derrotas que não estava pronto para assumir.
Na diagramação do livro, esse parágrafo tem nove linhas - e
oito "quês".
Esse é apenas um detalhe dentro do quadro maior, em que a
linguagem utilizada pelo autor não difere muito do tom irado e por vezes
caótico dos articulistas de opinião ou dos leitores que escrevem cartas para
jornais. Talvez ao analisar-se o romance como um todo, quando ele aparecer,
essa opção se torne defensável, mas aqui se mostra equivocada, uma vez que o
narrador se lança em diatribes tão intensas de suposta crítica social que
parece esquecer do que está contando. Parece um panfleto sindical - e sem o uso
irônico que Ricardo Lísias, por exemplo, para usar outro autor do livro, faz da
prosa de manuais de gerenciamento em O Livro dos Mandarins.
O Que Você Está Fazendo Aqui, de Luisa Geisler
Talvez a exigência da Granta de ineditismo nos
textos enviados para seleção tenha vitimado Luisa Geisler, uma vez que
esta história me soou exatamente como o reflexo distorcido (e bem menos
interessante) de outra história já publicada pela autora: Apenas este
Réquiem para Tantas Memórias, conto que abre seu livro de estreia, Contos
de Mentira. Em ambos, personagens viajantes vão perdendo controle da própria
vida e talvez de sua própria sanidade à medida que se sucedem vertiginosamente
dois signos específicos do personagem em trânsito: salas de embarque de
aeroportos e escadas rolantes. Especificamente no conto O Que Você Está
Fazendo Aqui, Luisa cria um personagem que é executivo ou contato de uma
agência que, por força de seu trabalho, precisa viajar constantemente, pulando
de Hong Kong numa semana para Camberra na outra e Hamburgo na
seguinte, e assim por diante. Não fica claro exatamente o que esse personagem
faz ou de que é a agência em que trabalha (imagino que seja essa mesma a
intenção da autora), apenas que ele está sempre viajando, e transformou o
deslocamento constante em um meio de fuga (foge da casa da mãe, onde as coisas
são difíceis, foge de relações amorosas, foge de seu chefe, usando as viagens
como desculpa para não atender o telefone).
A história do personagem é contada aos saltos, intercalados
por frases interrogativas como"O que você deveria fazer?" ou "Para
onde você está indo?". A transição entre essas perguntas e a história do
homem em trânsito (o nome dele é Lucas, mas sua construção é tão incolor que eu
tive de voltar ao livro para confirmar - e talvez isso estivesse dentro da
proposta, também) é feita pela apresentação do conceito (em alemão mesmo) Weltanschauung.
Há várias formas de explicar o que isso quer dizer, a maioria delas longuíssima,
mas fiquemos com a mais canhestra e breve: Weltanschauung é
"visão de mundo", um conceito cunhado por Immanuel Kant (1724-1804)
em Crítica do Juízo para a definir a forma como os sentidos
sintetizam nossa percepção do mundo e da natureza. Foi reutilizado por uma
ampla gama de pensadores, de Fichte a Sartre. E o que está
fazendo aqui? Imagino que pontuando, como refrão, os blocos de texto nos quais
Lucas é apresentado "correndo pelos corredores" ou subindo
e descendo escadas rolantes até perder gradativamente contato com sua própria
"visão de mundo". Cada frase, portanto, é como uma vinheta para o
episódio na vida de Lucas que vem a seguir, mas aqui Luísa não consegue passar
o recado tão bem quanto no conto anteriormente citado, Apenas este Réquiem
para Tantas Memórias, no qual a progressiva desagregação da psique do
personagem, um fotógrafo, diante da sucessão de aeroportos nos quais espera
aviões como se preso em um limbo, era expressa também na inadequação da
linguagem: o sujeito trocava até de idioma por se ver perdido no vácuo
gelatinoso desses espaços sem tempo que são as salas de espera. Já Lucas parece
não evoluir ou se transformar ao longo de toda a narrativa. Em tempo: a certa
altura do conto da Granta, em um diálogo ríspido entre o chefe e Lucas, o
patrão cita os problemas que a demora do protagonista em realizar uma tarefa
vai acarretar ao prazo de um terceiro envolvido, um fotógrafo - pode até ser o
mesmo personagem do conto anterior.
Por incrível que pareça, este conto da Granta se
vale bem menos da repetição de estruturas que o anterior da autora, mas ainda
assim soa mais repetitivo.
"Encarando a
Granta" - Parte II
Ao digitar o post anterior destas críticas da Granta,
cheguei a pensar que havia uma ordem na maneira como os editores resolveram
distribuir os autores e que era óbvia o tempo todo: alternância entre homens e
mulheres. Bom, também não é essa a intenção, como os quatro contos analisados
neste bloco deixam claro - continuamos a apresentar as resenhas na ordem em que
os contos aparecem no livro. Continua, ao menos para mim, o mistério da ordem
dos autores: foi no sorteio, foi pela ordem da terceira vogal de cada nome, foi
por cor clubística? Cartas para a redação. Vamos a mais quatro contos da
Granta:
Tólia, de Ricardo Lísias
Em mais um texto da coletânea com um pé na metaficção,
Lísias narra a história de um homem que, após uma década dedicado à literatura
como profissão, desiste da escrita (mais uma forma de autoanálise do que
vocação, ele reitera) e volta ao xadrez profissional, que praticou na
adolescência, como uma tentativa de entender a si mesmo e diminuir a
inadequação de seu ser ao mundo (ele não dorme direito e se irrita com qualquer
barulho, até mesmo os produzidos pelo próprio corpo). Numa viagem à Rússia
para estudar xadrez diretamente na pátria oficial do jogo, o personagem se mete
em uma confusão e termina fazendo contato com uma seita mística que postula o
silêncio e a comunhão espiritual para a comunicação entre si e entre a própria
natureza. A metaficção, aí, não reside só no fato de o personagem ser um
escritor, e sim de o personagem - que não tem nome - ter parte de sua biografia
decalcada da vida do autor. Dois títulos de livros escritos pelo personagem
citados na história, Cobertor de Estrelas e O Livro dos
Mandarins, são os de livros do próprio Lísias.
Há um humor tortuoso na narrativa que por vezes se aproxima
da gurizice, como se diz na minha terra: os integrantes da seita só comunicam
entrando em transe meditativo para despertar o "olho interno" - vai
ser o maldoso sou eu, também. Assim como em O Livro dos Mandarins e O
Céu dos Suicidas, Lísias faz de uma viagem (ou de seu anseio) um pretexto para
uma sátira: a obsessão do personagem e da seita por conseguir uma forma de
comunicação que prescinda da palavra, se lida a sério, soa com a afetação que
já apontei na primeira resenha: a de reclamar da inutilidade da literatura
escrevendo literatura – literatura é a técnica a serviço de uma visão de mundo,
e se a sua visão de mundo desdenha a técnica e a expressão, o mais honesto
seria abolir completamente a expressão. Mas Lísias é um escritor que já antes
se valeu da ironia como elemento de humor, e por isso prefiro ler o conto como
uma bem urdida sátira justamente a essa visão. Em termos formais, não há tanta
ousadia como nos fragmentários ou reiterativos romances anteriores, mas isso
pode ser tributado à brevidade exigida do conto. Como uma obra extremamente
cerebral, contudo, ela se não tenta seduzir leitor algum.
Apneia, de Daniel Galera
O texto de Galera na Granta é um trecho de seu romance a ser
lançado em breve, Barba Ensopada de Sangue, mas mantém unidade quando lido
sozinho - se fosse um conto resumido apenas naquilo que está no livro, não
seria mal compreendido. É também um dos textos mais longos da coletânea. São
vinte páginas, estruturadas durante a maior parte de sua extensão em diálogo e
na narração de um personagem diretamente para o outro – há intervenções apenas
pontuais de um narrador em terceira pessoa. Um pai e um filho, durante um dia
escaldante em Porto Alegre, conversam longamente, todo o diálogo circundando a
pergunta fundamental feita pelo filho ao chegar para visitar o pai: por que ele
está com um revólver na mesinha que tem ao seu lado. Antes de finalmente
responder essa pergunta, o pai desvia o assunto para a vida de outra pessoa, seu
próprio pai, avô do outro personagem, assassinado em circunstâncias não bem
explicadas em uma vila de pescadores em Garopaba. A relação do homem do
revólver com seu pai e com seu filho é o eixo que estrutura o conto (outro
olhar nesta coletânea sobre as relações familiares diretas).
Construir um texto composto em sua maior parte por diálogos
é um desafio por mais de um motivo. Se um diálogo se estende além da conta, o
leitor pode perder o fio da meada de quem está falando o quê, com prejuízos do
entendimento ao final. Se o conto é um longo diálogo com poucas intervenções,
pode dar a impressão de ser um roteiro audiovisual, não prosa. Escrever um
longo diálogo significa que o escritor terá que dotar os dois personagens que
estão falando de vozes autônomas, sob pena de a linguagem pasteurizar a única
forma que um texto dialógico tem para dar individualidade aos falantes sem
recorrer à narração em terceira pessoa: síntaxe e vocabulário. Galera se esmera
mais no segundo: o vocabulário do homem do revólver é idiossincrático,
coloquial mas não caricato, usa a conjugação do pronome na segunda pessoa com
verbo na terceira ("Tu vai fazer") sem que isso soe nem artificial
nem afetado (ao menos para mim - quem não é do Rio Grande do Sul talvez ache
esquisito. Aceito comentários). E o pai enrolador é também um grande contador
de histórias, razão pela qual, mesmo quando a prosa desvia para longe do que
parecia ser o assunto principal acompanhamos a narrativa voando, quase sem
tropeços ou tédio (esse é outro problema de contos com diálogos: se o
personagem for chato, tem-se a mesma dificuldade de prestar atenção no que ele
está falando que se teria numa conversa real). Não é um texto irretocável,
contudo. Depois de tanto falar sobre os perigos do diálogo na construção de uma
história, constato surpreso que alguns tropeços de linguagem cometidos por
Galera não estão na voz dos protagonistas, mas sim na parte em que o narrador
em terceira pessoa assume o comando e dispara lugares-comuns e frases feitas
como "tornou-se um sedentário convicto (p. 82) ou "Um cansaço
imenso cai sobre seus ombros de repente" (p. 94).
Para além de qualquer questão formal, contudo, está-se
diante de um texto comovente - o final, que atinge o leitor com emoção mas sem
sentimentalismo, não deixa de reiterar aquele que vem sendo o "grande
tema" da literatura de Galera: a vida e a identidade como uma construção
do ser humano, resultado de escolhas cujas responsabilidades devem ser
assumidas com estoicismo.
Valdir Peres, Juanito e Poloskei, de Antonio Prata
À semelhança de Lísias, Prata é conhecido por
textos de humor - embora o tipo de humor praticado por ambos não possa ser mais
diverso. Lísias é um satirista sarcástico, enquanto Prata opera no humor mais
"convencional" de costumes e imprensa. Neste conto, entretanto, Prata
não é o humorista de suas crônicas de jornal, e sim um contista no qual o humor
ainda está presente, mas mesclado a uma certa melancolia que subjaz a uma
peculiar história de amadurecimento. Em uma vizinhança suburbana no início dos
anos 1980, um grupo de garotos da vizinhança testemunha a escalada de uma
"disputa por status" entre dois garotos, Henrique e Rodrigo. Em uma
comunidade na qual, como narra o autor no início do conto, "de início,
todos na rua tinham o mesmo poder aquisitivo e os bens per capita resumiam-se a
uma bicicleta, uma bola de futebol, uma caixa de Playmobils, peças para montar
e outras quinquilharias", o fato de Rodrigo ganhar um carrinho de
controle remoto perturba o equilíbrio. A cada presente de Rodrigo, Henrique
ganha outro, algo melhor, até um deles enfrentar a inapelável derrota.
A prosa é segura, seu tom, se não se eleva, também não se
compromete. Para além de qualquer ímpeto de saudosismo (o título faz referência
a figurinhas fáceis do álbum daCopa de 1982, que em São Gabriel chamávamos de
"buchas", mas não sei se essa gíria é compreendida por todo mundo),
um dos grandes destaques do texto é sua bem sacada relação entre o
amadurecimento contemporâneo e a sociedade de consumo: nesta crônica de fim da
infância suburbana, o que marca o ingresso no mundo adulto não é a construção
de uma identidade primária, mas a descoberta, bem menos inocente, das
diferenças de poder aquisitivo dos pais de cada um. E poderia ser diferente
numa infância imersa na sociedade de consumo? Talvez fosse necessário apenas um
olhar mais crítico a esse fenômeno, dado que o tom é memorialístico, e o
narrador hoje teria condições de elaborar melhor questões que seu
"eu" infantil não teria percebido, mas talvez aí o conto fosse outro,
sem garantia de ser melhor do que já está.
O Jantar, de Julián Fuks
Mais uma história na qual o autor deliberadamente acena ao
leitor com pontos de contato metaficcionais entre sua própria trajetória e o
que está contando. Um brasileiro de nome Sebastián, filho de argentinos
exilados (até aqui um personagem semelhante ao autor, até na rima na última
sílaba do nome) visita em Buenos Aires uma tia de fumos aristocráticos e
opiniões reacionárias, para o "jantar" que dá título ao livro. Terá
que decidir se cede aos ditames da boa educação ou a suas convicções
ideológicas no decorrer do diálogo com a tia, numa atmosfera de perigo incerto.
É um mote interessante de condução irregular. Os primeiros parágrafos, que dão
o tom do livro, são particularmente trucados por torções exóticas de sintaxe e
lugares-comuns, como nos trechos abaixo:
"Que aquilo a que chamamos terror também se irradia em
tantas formas menores, pensa, tantos atos indistintos de aparência inócua,
tantas circunstâncias sutis provocando discretos pavores"
"As pernas não fraquejam, ele tem os pés sólidos, as
roupas sóbrias, apenas ressaltam sua corpulência, seu porte avantajado".
(p. 113 ambos os trechos).
A primeira frase já deixa claro que, no meio de uma cena de
tensa domesticidade, Fuks pretende criar uma narrativa de horror – e em certas
passagens, vencidas as dificuldades dos parágrafos iniciais, ele tem pleno
sucesso. É crescente a tensão provocada pelo desconforto de Sebastián na imensa
e antiquada casa da tia, durante o frugal ainda que requintado jantar. Uma
atmosfera primeiro de incerteza e depois de pesadelo vai se alastrando
paulatinamente, mas sua extensão talvez demasiada enfraquece o conjunto, que
resulta muitas vezes disperso e truncado. Um detalhe final, contudo, escolhido
para amplificar o horror, soa gratuito e artificial, mais efeito do que
resultado, porque não destoa da atmosfera construída para a narrativa - não há
indícios pregressos que justifiquem o que ocorre, apenas a transferência,
talvez, do pesadelo metafórico para o plano da realidade ficcional.
"Encarando a Granta"
- Parte III
Até o momento o que me deixou mais desconcertado com a
edição número 9 da Grantanão foi a lista de seus participantes, e sim a
ordem em que foram dispostos no decorrer do livro. Já elaborei várias teorias
e, quando acho que consegui decifrar a intenção dos editores, quebro a cara. Em
determinado momento pensei que talvez a ordem fosse menino-menina, como já
observei, mas estava errado - o segundo bloco de resenhas foi majoritariamente
masculino.
Entre o último post e este, pensei ter chegado ao fim do
mistério: os autores estariam dispostos em ordem cronológica, com Laub, o mais
velho, no início, mas depois me lembrei que Luísa Geisler, a mais nova dos
selecionados, estava lá no primeiro bloco de quatro textos que resenhei, então
não, também não foi assim que os autores foram dispostos. Por temas é que não
foi, também, senão Laub, Galera e Leandro Sarmatz, por exemplo,
deveriam ter sido agrupados mais próximos uns dos outros. Continua o mistério.
Vamos então a mais um bloco de quatro contos da coletânea:
Noites de Alface, de Vanessa Bárbara
Vanessa Bárbara apresenta um fragmento de romance - e
portanto, a análise dos propósitos do texto, como já comentamos, fica
comprometida. A não ser em casos flagrantes como o trecho do Cuenca, sob o qual
já escrevemos aqui na primeira resenha, não há como imaginar o que pode ser
aquele fragmento no conjunto geral. Mas há textos nesta coletânea que encerram
episódios íntegros, muitas vezes com um gancho de suspense para o próximo
capítulo que desperta a curiosidade pelo restante ou que possibilitam o
entendimento autônomo da narrativa (o conto de Galera é um deles). O de Vanessa
não é assim. Ela narra o cotidiano incolor e algo melancólico de Otto, homem
que, ao ficar viúvo, perde com a morte da companheira também a âncora social
com o mundo ("Otto não havia convivido com os vizinhos senão por intermédio
de Ada e agora estava ilhado naquele mar de insânia coletiva."). A grande
força deste conto está na maneira delicada como faz dos ambientes e cenários
elementos importantes na própria condução da narrativa, mas como esse
procedimento é conseguido por acumulação - no caso, de descrições e flashes de
detalhes - às veze fica-se com a impressão de que um "drible a menos"
teria beneficiado o conjunto. É exemplar disso o parágrafo de abertura:
"Quando Ada morreu, as roupas ainda não tinham secado.
O elástico das calças continuava úmido, as meias grossas, as camisetas e as
toalhas de rosto penduradas do avesso, nada estava pronto. Havia um lenço de
molho dentro do balde. Os potes de recicláveis lavados na pia, a cama desfeita,
os pacotes de biscoitos abertos em cima do sofá – Ada tinha ido embora sem
regar as plantas. As coisas da casa prendiam a respiração e esperavam. Desde
então, a casa sem Ada é de gavetas vazias." (p.127)
Depois de uma competente descrição do ambiente, Vanessa
parece achar que precisa de uma última frase para deixar claro ao leitor - caso
ele não tenha entendido, é a impressão que me passa - quanta solidão aquelas
paredes encerram. E, talvez apegada aos próprios achados, ela se vale não de
uma, mas de duas frases: /"As coisas da casa prendiam a respiração e
esperavam./ /"Desde então, a casa sem Ada é de gavetas
vazias."/ São ambas frases bonitas e bem sacadas, mas juntas, na
sequência da descrição que Vanessa havia apresentado, têm seu efeito
potencializado até derramar no fosso do piegas. Ao mesmo tempo, a narrativa vai
e vem, conta como Otto era, como Ada era, como se conheceram, e essas idas e
vindas parecem não ir a lugar algum - justamente por estarmos falando de um
fragmento, e provavelmente um fragmento inicial. É um texto bem escrito, mas
que teima em fugir da memória depois que se termina - aguardemos pelo romance
completo.
A Mãe, de Chico Mattoso
Em Nunca Vai Embora, seu romance ambientado em Havana e
publicado como parte da Coleção Amores Expressos, Chico Mattoso já
havia provado que tinha a pegada ágil do bom narrador - aqui confesso meu juízo
incompleto, eu não li Longe de Ramiro, seu livro de estreia. Mas, ao menos
para mim, faltava ao autor a carpintaria do que narrar, de como fazer os
episódios se conectarem de modo orgânico - o que é necessário mesmo para finais
abertos como o que ele escolheu para o romance. A impressão se repete na
leitura deste conto estruturado em três camadas, cada uma correspondente a uma
seção numerada do texto. Na primeira, um narrador em terceira pessoa apresenta
a história de um rapaz, Rodrigo, que vive imaginando a morte da mãe, o momento
em que acontecerá, o modo, etc. Na segunda parte da narrativa, Rodrigo é
mostrado em seu apartamento, em um momento de intimidade com a namorada - empolgado,
ele mostra a ela um texto que escreveu (a primeira parte do conto, que recém
havíamos lido) e ambos discutem a verossimilhança e a propriedade daquela
ficção, entre goles de cerveja e vinho. Rodrigo sente o conflito de muitos
autores, o de não conseguir transmitir para ela, sua leitora, o motivo para as
escolhas que fez na construção daquele texto. Insinua-se também pela cabeça de
Rodrigo a mesma dúvida que assombrava o personagem do texto: a antecipação da
morte da mãe, posta desta vez em ficção e apresentada a outrem:
"As coisas não funcionavam assim. Havia milhões de
alternativas à sua disposição. guardar o texto, por exemplo. Esquecê-lo. Voltar
a ele muito tempo depois, quem sabe quando a mãe tivesse efetivamente deixado
este mundo. Mas não havia algo de cruel nesse cálculo? No fundo, qualquer
tentativa de antecipação do evento lhe parecia ofensiva, e agora a própria
ideia de ter escrito algo a respeito – e, pior, mostrado a outra pessoa – o
enojava. " (p. 138)
Na terceira seção do conto, encontramos Rodrigo no há muito
antecipado funeral da mãe, anos mais tarde, onde ele vem a reencontrar Marina,
a namorada da cena anterior - separados, cada um foi para um lado. Ao se
ver na situação antes imensamente antecipada, Rodrigo aparentemente não reage
como achou que reagiria - ele reage pouco, na verdade, ainda amortecido pelo
choque. É o que dá a entender o final.
Recontando-se a história, percebe-se a intenção do autor,
mas a estruturação dos blocos não é eficiente em transmitir essa dissociação
entre o real e o imaginado que está no centro da peça. Talvez a questão aqui
seja de linguagem. Este já é o décimo texto da coletânea, metade do conjunto, e
tirando até aqui três exemplos bem demarcados de autores com uma prosa que se
distancia do meramente "bem escrito" - Laub, Galera e Cuenca -
, todos são elegantes e de certo modo corretos, mas de tal modo semelhantes no modo
como tratam seu objeto que começam a se confundir. Mattoso escava a psique de
seu personagem com afinco, como Fúks já fizera, mas ambos mantém o registro da
linguagem em uma neutralidade quase transparente - no que deveria sobressair a
história, mas ambas as histórias apelam para a indefinição - que pode se tornar
uma fórmula como qualquer outra se usada em demasia.
Temporada, de Emílio Fraia
Cheguei ao fim de Temporada, de Emílio Fraia, e voltei à
página de apresentação para verificar se havia ali alguma informação que
estabelecesse o texto como um fragmento de uma narrativa maior. Numa narrativa
estruturada em quatro partes numeradas, o mesmo personagem é mostrado em
dois momentos cruciais: como jovem e promissor tenista amador, residindo em
Londres, e mais tarde, como uma sombra lesionada, proprietário de uma espécie
de pousada de segunda linha que recebe a improvável e mesmo inconveniente
visita de um desembargador em férias. É um texto disperso, que desperdiça no
vazio bons momentos de tensão sem chegar a resolução alguma. Mesmo para um
conto que trabalhe com o subentendido, há diferenças entre o escritor que não
amarra tudo de modo preciso, deixando frinchas e espaços a serem preenchidos
pelo leitor, e o escritor que parece não ter amarrado nada, só deixado tudo
espalhado pela garagem. Fraia escreve bem, e o leitor é levado pela narrativa
sem protestar – a não ser no ocasional e reiterado uso de dois pontos, não
apenas antes de longas enumerações (um dos artifícios bem sacados de estilo do
conto) mas de adjetivos banais como em "A Goldsmiths fica em New
Cross e ir a Hampstead todos os dias não é o que se pode chamar de:
empolgante." Entretanto, é sincera e tocante a cena em que o
personagem, em um apartamento vazio, desaba diante da vida aparentemente
estruturada que leva, mas isso não parece coordenado com o resto, e assim é com
todos os microfragmentos desse conto já fragmentado: o desembargador hóspede
quer comer no jantar um porco que viu na estrada, e os empregados saem a
procurá-lo. A caçada ao porco lembra o protagonista de sua temporada em
Londres, quando ele e um colega planejavam capturar uma raposa que rondava o
alojamento. Depois, ele é mostrado procurando um novo lugar para morar, já que
a noiva está de passagem marcada para vir encontrá-lo. Depois ainda, ele trava
conversa, em um pub, com uma jovem que vira jogando numa quadra adjacente à que
treinava, e segue-se uma clara aproximação. Nenhum desses plots se resolve, e o
texto é curto demais para que tal forma se justifique. Se for um fragmento de
uma narrativa maior, conseguir me deixar curioso pelo resto, mas acho que tal
menção deveria estar expressa no livro, como aliás está em todos os demais
casos. Como não está, tratei o texto como um conto - e como conto ele é
desconexo e desperdiça bons momentos em uma narrativa frouxa.
F para Welles, de Antônio Xerxenesky
Em 1985, uma assassina profissional recebe uma incumbência
que a leva a adquirir familiaridade com a obra cinematográfica de Orson Welles
para poder cumprí-la. Já no título, percebe-se a volta de Xerxenesky à
narrativa pós-moderna a que vem se dedicando desde Areia nos Dentes. F
para Welles é uma referência ao título original do filme de Welles Verdades
e Mentiras, de 1973 (F for Fake, ou "F de Falso", em tradução livre).
No filme, Welles discute a natureza das mentiras na arte ao abordar a história
de um falsificador de quadros húngaro. No conto, Xerxenesky também se vale de
um personagem à margem da lei, embora, como este é um fragmento de romance, eu
não tenha tido uma noção muito cristalina do que ele está discutindo, mas me
parece a natureza redutora, arbitrária e inevitavelmente mentirosa das
narrativas. Como diz a personagem Ana X., uma assassina brasileira e com um
sobrenome "esquisito e incomum" começado com X (a letra da
indeterminação, e também a inicial do sobrenome "esquisito e incomum"
do próprio escritor):
"Reluto a falar de meu pai, pois tenho medo de que isso
seja visto como o meu Rosebud: a chave de entendimento para a história de minha
vida."
O registro da prosa é paródico: Ana X. fala de modo tão
douto e professoral, discorrendo sobre a filmografia de Welles, as sensações
provocadas pelo LP Rio, do Duran Duran, A morte de Ivan Ilitch,
de Tolstói, que não parece um personagem de verdade - e como personagem de
caricatura exacerbada, não parece uma mulher, o que pode ser intencional, uma
vez que o retrato farsesco pode se tornar legítimo quando dissociado do clichê
mais associado à farsa. A dissociação entre discurso e intenção também é bem
tramada: embora se justifique o tempo todo (talvez um tantinho mais do que
devia) tentando não apresentar uma imagem demasiado simples de si mesma, a
personagem não interrompe em momento algum sua narrativa - a não ser quando
precisa dar conta de um episódio definidor de sua relação com o pai. Nesse
momento, a personagem altamente articulada e direta em suas colocações prefere
rodear certos atos inomináveis por meio de elipses – uma delas, em tom e
intenção, é bastante similar, curiosamente, ao episódio fundamental da
narrativa de Michel Laub nesta mesma Granta. Essas fissuras no tom
caricato do discurso não deixam de ser interessantes: pelo que a própria
pr0tagonista conta, ela é uma profissional da morte, e no entanto a morte é
apresentada como além do discurso, que por sua vez se espraia sem fronteiras
sobre temas amplos. Isso se o próximo capítulo não revelar que este
trecho em particular é uma história escrita por alguém, como em Areia nos
Dentes. O que vale é que o final, suspendendo a narrativa em um gancho com ares
de thriller – outro gênero presente na colagem paródica que forma a narrativa
–me deixou curioso pelo resto.
"Encarando a
Granta" - Parte IV
A própria natureza deste projeto provoca seu atraso. A Granta,
é óbvio, já está lida, mas faltou-me ao longo da última semana tempo para
redigir os textos dos dois blocos faltantes, e por isso este está entrando no
ar só agora. Se eu tivesse me restringido a escrever uma breve impressão de
cada conto, seria mais fácil, mas tenho tentado me deter em cada história para
fazer uma leitura que vá além do conjunto clássico
"resumo/opinião/ressalva" que costuma ser a tônica da maioria das
resenhas. Se tenho conseguido, não cabe a mim julgar. Apesar da demora, contudo,
vamos ao quarto e penúltimo bloco de textos sobre os contos selecionados para a
polêmica Granta:
A Febre do Rato, de Javier Arancibia Contreras
Recentemente o cineasta Cláudio Assis lançou seu
terceiro longa-metragem, que tem o mesmo nome deste conto - o que achei
peculiar. Fui consultar meu colega Daniel Feix, crítico de cinema e um dos
blogueiros do blog amigo Cineclube ZH, e ele comentou que, ao conversar
com Assis em um festival, ouviu a explicação de que "febre do rato" é
uma expressão comum em Pernambuco para se referir a alguém fora do seu estado
normal, descontrolado. O equivalente a "surtado", por exemplo. Como
Contreras nasceu na Bahia, provavelmente uma coisa não tem nada a ver com a
outra, mas curiosamente o título pode ser lido nessa acepção quando aplicado ao
conto. E em outra, bem mais literal, também. O protagonista é um tradutor:
"Mas não um desses triviais, de idiomas monótonos e
insípidos como o inglês. Traduzo obras diretamente de idiomas incomuns,
gramaticalmente complexos e pouco eufônicos como os escandinavos. No entanto,
intimimante, meu maior orgulho, e tenho mesmo o ego inflamado por isso, é ser
considerado o único profissional competente e gabaritado do país a
traduzir qualquer obra diretamente do mais misterioso, dialetal e literário
idioma eslavo, o russo.", ele declara, com pedantismo risível – imagino,
por ser um leitor otimista, que essa afetação ridícula seja uma construção
intencional do autor para contrabalançar a atmosfera opressiva e misantrópica
do conjunto, claramente uma dilução dos momentos mais abissais de Dostoiéwski
(a menção ao russo não é gratuita). O tradutor volta para uma casa em uma
localidade afastada. Está com "uma perna quebrada e a outra com hematomas
por quase toda a sua extensão" e só consegue se locomover de muletas. A
casa está mal cuidada e deserta, porque a mãe do personagem, a única habitante
do lugar, morreu recentemente - isso e um fiasco que o misantropo protagonista
aprontou no velório têm relação como atual estado alquebrado do sujeito. E,
o mais importante, o tradutor não está sozinho, algo que descobriremos junto
com ele.
Há dois pontos bastante positivos a apontar no conto, ambos
resultados de uma elogiável habilidade técnica: Javier Contreras narrar de modo
o mal estar físico, quase de modo a contaminar o leitor com a dor ou o incômodo
do personagem. Outro mérito é o uso sábio e consistente do suspense.
Infelizmente, contudo, o final acena com a mais batida das resoluções: o apelo
ao onírico.
Faíscas, de Carol Bensimon
O texto é um fragmento da narrativa de estrada que a autora
está escrevendo e, diferentemente de outros textos desta coletânea, não tem
grande autonomia se lido sozinho – o que é sempre uma pista de como uma
narrativa longa se desenhará quando pronta: um fluxo do qual é difícil destacar
um fragmento ou uma sucessão de episódios que mantêm relativa autonomia. Mesmo
com tal caráter, o fragmento é interessante e consegue despertar a curiosidade
pelo que deve vir depois mesmo sem o apelo a um "gancho" no final,
como o conto de Antônio Xerxenesky. Uma jovem embarca em uma viagem
de carro pela BR-116 com uma amiga, outrora inseparável, mas com quem a relação
anda meio estremecida devido a uma não muito explicitada briga "que
continua pairando sobre nós", nas palavras da protagonista – o conto é
narrado em primeira pessoa. Ambas se reencontram após terem passado temporadas
nos Exterior – a protagonista, em Paris; a amiga, Júlia, em Montreal – e se
lançam ao que há anos imaginam como uma "viagem sem planejamento": um
rodar errático pelo interior do Rio Grande do Sul até cidades escolhidas a esmo
desdobrando-se o mapa.
É uma viagem fruto de um momento claramente posterior ao
impulso beatnik e seus ecos brazucas: o de "lançar-se na descoberta da
real identidade de seu chão natal". Para ambas, ao menos até este ponto, o
que parece valer é a noção de movimento e o ineditismo do destino, mais do que
qualquer contato humano. Um sinal disso é que, embora engajadas no que chamam
de jornada sem planos, portanto supostamente aberta ao acaso, ambas se sentem
agredidas e incomodadas quando, ainda no início da viagem, são abordadas por um
homem que vê a protagonista apanhar Júlia em frente a seu hotel. Trajando
bombachas (o traje típico do gaúcho no imaginário cristalizado pelo tradicionalismo),
o sujeito bate no vidro pelo lado do motorista e aponta, em tom acusatório: "Essas
tuas botas são de homem". As "botas" são coturnos Doc Martens,
signo de "atitude" cosmopolita na atual sociedade de consumo, o que
se choca com a visão de mundo daquele homem que ainda mantém no corpo, em Porto
Alegre, calças para o trabalho rural. Um encontro nada sutil entre o moderno e
o tradicional que marca o tom do romance, ou melhor, do fragmento: duas garotas
de mentalidade urbana e contemporânea se lançam a uma viagem pelo
"interior profundo", onde provavelmente serão, na maior parte do
tempo, criaturas deslocadas emitindo códigos que serão lidos pelo avesso. Torço
para que o que vem depois aborde isso em algum momento.
Na questão formal, embora dona de uma prosa que avança
elegante, Carol às vezes se excede nas imagens. O uso de metáforas é sempre uma
arte complexa, porque se busca a tradução de uma situação ou imagem em termos
de outra, supostamente mais familiar ao leitor, ou completamente oposta, para
fins de comédia ou ironia. O problema que vejo é quando tais imagens vêm aos
pares, às vezes cumprindo, cada uma, uma dessas funções. Em um contexto
realista (é o registro de Carol no texto, e por "realista" me refiro
a um texto que ambienta sua história no mundo concreto sem se valer de
elementos suprarreais ou sobrenaturais), isso alonga a frase desnecessariamente
e, ao contrário de somar, potencializando os efeitos, ameniza-os, por divisão,
por passar a impressão de que o narrador, que em tese deveria saber ao menos de
suas próprias impressões, é um indeciso – falo do narrador, não da autora. Como
no fim do parágrafo abaixo:
"Não era mais a mesma rua, quer dizer, era a mesma rua,
mas no lugar das casas de meus amigos de infância – onde eles estavam agora? –
tinham erguido um prédio. Assustava-me pensar que as preferências estéticas de
alguém podiam estar resumidas naquele mastodonte branco de dezessete andares,
que se destacava na quadra como uma mulher nua em uma congregação de freiras ou
como uma freira no I Encontro Brasileiro dos Praticantes do Poliamor".
Ou na flagrante indecisão também deste trecho, que
claramente se expande em um detalhe colateral como forma de ralentar a ação mas
parece se alastrar demais em sua indeterminação que se esforça para ser
específica:
"Ele era a única pessoa que havia sobrado de todo
aquele burburinho do início, além de dois funcionários usando quepes típicos de
quem manobra carros, mas que sem dúvida pareciam remeter a outra coisa, talvez
a dois garotos fantasiados para um baile de carnaval da Sociedade Amigos de
Tramandaí"
Teresa, de Christiano Aguiar
Um conto breve e fragmentado no qual Christiano Aguiar ganha
alguns pontos já de saída por ser um dos poucos textos cujos personagens e
trama se afastam do "protagonista burguês" (ou seja: classe média,
com boa formação intelectual ou emprego bem-remunerado, muitas vezes ligado ao
ofício da escrita) que povoa toda esta antologia, como vocês mesmo puderam ler.
A Teresa do título é uma nordestina pobre que casa-se com um homem
que depois vai tentar a vida em São Paulo enquanto ela espera. Teresa é
desdobrada, em uma narrativa algo cubista, em quatro planos: o casamento na
juventude, a velhice em companhia do filho, uma tragédia que vai sendo
gradativamente revelada à medida que se sucedem parágrafos repetitivos nos
quais a cada vez um novo elemento de uma cena vai sendo descortinado. O quarto
plano é a narrativa bíblica de Elias, contada pela própria Teresa.
Cada fragmento se vale de uma técnica: a vida de Teresa e de
seu marido Petrúcio em algum ponto não determinado no Nordeste descrita com
sobriedade lírica; a vida de Teresa mais velha na casa do filho narrada em tons
de realismo mágico; a cena trágica repleta de redundâncias que se somam como
refrões e a narrativa de Elias em tom solene e hierático, como compete aos
textos sagrados. A história de Elias, embora aparentemente deslocada e gratuita
no início, se encerra em tom de parábola que ecoa a situação de Teresa na
velhice – ainda que bem bolado, esse recurso não é indispensável para a
arquitetura do conto, o que me parece perigosamente com excesso.
Curiosamente, a forma como Teresa é mostrada em sua vida com
o filho me lembrou três outros textos mais antigos que talvez seu autor sequer
tenha lido: Uma História de Borboletas, de Caio Fernando Abreu, Os
Tambores Silenciosos, de Josué Guimarães, eCarta a Senhora em Paris,
de Cortázar. Não na prosa, especificamente, mas na forma como um elemento
sobrenatural ordena e dá sentido à narrativa, em tons diversos para cada autor.
É uma peça ousada – e por isso mesmo elogiável. Ainda que o
resultado final na montagem de tantos fragmentos diferentes seja algo
desconjuntado, vale a ambição que moveu o autor ao mesclar registros e facetas.
Você Tem Dado Notícias?, de Leandro Sarmatz
Philip Roth é uma influência, até mesmo uma sombra
para Leandro Sarmatz, como já ficou claro na primeira parte de seu livro
de estreia, a coletânea de contos Uma
Fome. Esta peça em primeira pessoa não é diferente, tanto no olhar que
lança para a vida como um processo que chega ao fim quanto na raiva que
transborda dessa constatação, como no primeiro parágrafo, em que é impossível
não ouvir ao fundo ressonâncias de Homem Comum, Animal
Agonizante ou Fantasma Sai de Cena:
"Não interprete uma vírgula do que estou dizendo. Não é
o caso de bancar o talmudista. Só tenho a dizer que estou morrendo, tenho
câncer, briguei com todo mundo lá fora. Estou cansado. O tique-taque do relógio
indica: é o fim."
Estabelecido já desde o início que Roth é uma presença neste
texto, nosso próximo movimento, naturalmente, não é ficar apontando
minuciosamente suas aparições, e sim buscar os pontos de seus exorcismos. Em
palavras mais simples: ver que uso Sarmatz faz desse modelo e até que
ponto ele é uma armadura engessante ou um trampolim.
Você Tem Dado Notícias? é narrado por um pai
irresponsável em um duro acerto de contas com um filho, um interlocutor
silencioso percebido apenas pelas furiosas invectivas do narrador. Na situação
de "fim de vida" narrada no primeiro parágrafo, o pai egoísta não tem
mais freios morais ou sociais para levar em consideração e consegue ser
abertamente brutal em sua exposição de motivos para os caminhos que tomou na vida.
Em conflito permanente com a família da mulher com quem se casara ainda muito
jovem, o narrador abandona a família, parte em uma jornada que considera de
libertação mas que a narrativa claramente identifica como de isolamento. Em
suas memórias de raivoso delírio, também revisita sua infância, a tumultuada
relação com a cultura e a religião judaica, com o sogro, um empresário judeu,
com a mulher com quem casou, aparentemente plena de ideia libertários mas que
se acomoda fácil em um casamento tradicional, e o tardio "desbunde"
regado e sexo e drogas depois do fim de seu casamento.
Como eu disse, Roth está presente desde o começo, embora
esta narrativa em particular pegue bem mais leve no sexo e em suas decrições do
que seu modelo. O mergulho aprofundado na consciência do personagem também deve
muito ao seu mestre de Newark. Mas a narrativa não deixa de, a seu modo, seguir
o progresso do protagonista. Assim como ele pula fora da cultura institucional
judaica para se lançar em uma viagem tardia de imersão no "espírito do
tempo", o conto vai se decalcando de Roth à medida que história segue o
personagem para fora do ambiente judaico que o formou e se lança sobre a
realidade brasileira algo tumultuada dos anos 1970, acrescentando algo pessoal
e até certo ponto original na mistura. O ápice dessa evolução se dá em um
melancólico episódio no qual o protagonista, entusiasmado pela descrição que
uma de suas namoradas faz de um refúgio comunal no interior, viaja até o lugar
para encontrar um sítio decadente, mal cuidado e repleto de drogados caídos
pelos cantos. Esta cena em particular ecoou em mim como um pastiche à
brasileira da viagem a um kibutz empreendida pelo protagonista de Caixa
Preta, de Amoz Oz, outro texto repleto de matrimônios infelizes,
paternidade ausente e identidade judaica.
"Encarando a
Granta" - Parte Final
Chegamos ao fim da empreitada - ao menos EU cheguei - sem
ter a menor ideia do critério utlizado para dispor os escritores nas páginas do
volume da Granta dedicado aos 20 jovens autores brasileiros. Via mensagem
privada no Facebook, um leitor deste blog (que terá sua identidade preservada
justamente por ter declarado que não queria ser exposto), arriscou uma
hipótese: "Arrisco um palpite: como o do Michel Laub tem sido considerado
o melhor por muita gente (eu prefiro o da Laura Erber, que é justamente o
segundo, e isso só confirma a minha tese) e o da Tatiana Salem Levy é
unanimemente considerado o pior, me parece que foi a ordem classificatória
mesmo".
Pois é, é uma hipótese a se considerar, mas creio que é
inválida por dois motivos: pelo alto grau de subjetividade de uma seleção como
essa. Se a classificação fosse elaborada por mim, por exemplo, o conto de Luisa
Geisler estaria mais para trás, o do Leandro Sarmatzviria mais para
frente, e o do Vinícius Jatobá, como veremos neste último episódio da
série, teria de ser um dos primeiros. Acho que a coisa foi mais na base do
sorteio, mesmo, e não se pode dizer que não houve precedentes. fui consultar o
número 7 da revista (a do Inverno de 2011, dedicado aos Melhores Jovens
Escritores em Espanhol), e vi que a ordem era tão aleatória quanto - o que por
si só já estabeleceria um padrão e tranquilizaria minha porção aristotélica
obsessivo-compulsiva se o primeiro número da revista no Brasil (a da Primavera
de 2007, com Os Melhores Jovens Escritores Norte-Americanos) não tivesse
distribuido os escolhidos por ordem alfabética de sobrenome. Vou, então, tomar
a decisão mais sábia: desistir de entender a ordem dos contos e voltar à
leitura deles.
Agradeço a quem leu até aqui tanto este post quanto os
demais, provando que o assunto poderia ser discutido para além das pressões do
noticiário diário e sua presa ávida de fatos do dia - a coletânea já saiu faz
um mês, a Flip já acabou faz tempo, etc... Este último post também demorou
porque confesso que este último bloco, justamente por ser o último, foi aquele
no qual tive mais dificuldades para dizer qualquer coisa sobre os textos ¿ dos
quatro, três não me impressionaram em quase nada, e não diferiam tanto assim
dos demais sobre os quais já havia apontado outras ressalvas. Mas, por questão
de justiça não podia encurtar demais as resenhas. Vamos, então, sem mais
delongas, aos últimos textos desta Granta:
Fragmento de um Romance, de Carola Saavedra
O título deste texto pode ser lido de duas formas: a
história é um pedaço de um romance, uma narrativa romanesca que a autora de Toda
Terça e Flores Azuis está escrevendo, e é também um fragmento de
um romance, um entrecho de uma aproximação romântica entre os dois personagens
principais. Uma jovem de nome Lena atende um pedido de sua irmã, Maike,
para que recepcione um escritor estrangeiro que vai ficar alguns dias hospedado
no apartamento dela (dela Maike). A moça vai, contrariada, entregar a chave
para o visitante e lá encontra um rapaz bonito que em nada se parece com a
imagem que ela faz de um escritor: "Por algum motivo, na minha cabeça
um escritor era um homem de meia-idade, muito magro e com fundas olheiras
contornando o olhos. E óculos. Escritores usavam óculos. Nisso ele se adequava
ao escritor da minha imaginação, mas era só."
Quando ambos se conhecem parece haver uma atração mútua. Ela
entrega as chaves, apresenta o apartamento e, quando está para sair, ele a
convida para tomar alguma coisa em algum lugar próximo. Já que ela apresentou o
apartamento, poderia apresentar parte da cidade. Ela aceita. Ambos começam uma
longa conversa pontuada de subentendidos e despontuada gramaticalmente:
Saavedra não marca com sinais gráficos as separações entre quem está falando o
quê, mas como o diálogo é o de duas pessoas que acabaram de se conhecer, e,
portanto, breve e entrecortado, a autora consegue manejar a conversa
tecnicamente sem que o leitor se perca. Lena é hostess em um restaurante,
profissão que a irmã deplora. Também parece alguém sem muita certeza do que
quer da vida. O escritor ainda não teve livros traduzidos no país da
protagonista (em momento algum é dito em que país ambos estão, mas os nomes das
duas irmãs e o frio que faz na rua quando ambos saem sugere um lugar qualquer
da Europa), e por aí vai. No final, instala-se uma dúvida quanto ao que a
protagonista narrou até ali ao homem que acabou de conhecer ¿ algo que
provavelmente será desenvolvido quando a narrativa ganhar corpo, mas me deixou
curioso pelo resto, se é que haverá resto e este não é um conto que se encerra
assim mesmo.
Talvez meu maior problema com o texto seja sua
indeterminação, não apenas geográfica, mas narrativa. Tudo é neutro e bem
escrito, mas por demais artificial, um registro que, embora ágil e até leve em
alguns momentos, não parece levar a lugar algum nem permite que os personagens
elevem-se acima de um retrato caricatural.
Violeta, de Miguel del Castillo
Há pontos de contato flagrantes entre este conto e o
de Julián Fuks ¿ são ambos visões dos anos de chumbo na América
Latina recuperadas pelo ponto de vista de descendentes dos perseguidos
políticos, como parecem ser os próprios autores. Na tradição com conto que
dribla seu leitor começando a falar de uma coisa para que depois se perceba que
o centro da narrativa é outro, o narrador em primeira pessoa começa a recordar
um primo de seu pai chamado Miguel Angel, desaparecido durante o período das
ditaduras militares do continente, nos anos 1970. "Meu nome de batismo,
portanto, é uma homenagem", diz o texto a certo momento, borrando
deliberadamente as fronteiras entre o autor e o narrador. À medida que a
narrativa avança, percebe-se que o centro não é o desaparecido Miguel, e sim
sua mãe, Violeta, que primeiramente se lança a uma busca desesperada pelo filho
e mais tarde vai morar com a irmã, avó do narrador, até sumir-se em um asilo,
vitimada pelo Alzheimer. Permeando esse fio condutor, há as relações do
narrador com essa história familiar, a noção de que o pai do narrador, primo do
desaparecido, sentia vergonha por estudar em um colégio militar enquanto o
irmão sonhava uma revolução. Talvez por lidar com questões de memória seja
intencional que o narrador se perca com relação ao fato principal, o
desaparecimento de Miguel. Diz ele no primeiro parágrafo:
"Miguel Angel foi um dos primos do meu pai, tupamaro,
que desapareceu na ditadura uruguaia"
Depois, ao esmiuçar esse desaparecimento, o narrador conta
que Miguel...:
"No Chile, tornou-se chofer da embaixada da Finlândia e
extraditava uruguaios com a ajuda da namorada finlandesa, a ditadura também por
lá, imagino que foi por isso que serefugiou na Argentina, o Partido por la
Victoria del Pueblo, a prisão. Dias depois, seria colocado no segundo voo
da morte: todos os presos políticos dentro do avião, a rampa de lançamento
abrindo e logo todos no ar girando..."
Pra mim, pelo menos, ficou no ar em qual das ditaduras
afinal o rapaz desapareceu, se no Uruguai ou na Argentina. Pode ser que o autor
tenha se passado, ou pode ser um erro do narrador imaginado intencionalmente
pelo escritor, uma vez que pare da narrativa é estruturada em um pastiche de
António Lobo Antunes: frases e diálogos fora do tempo da narrativa que irrompem
no meio do narrado, fazendo a memória invadir o conto. É um procedimento que
Antunes transformou em estilo de mestre em livros como Ontem Não Te Vi em
Babilónia ou Eu Hei de Amar uma Pedra, mas que me parece
deslocado neste texto de Miguel del Castillo, uma vez que a
narrativa não se sustenta com esse artifício em toda a sua extensão, e sim
apenas em seus capítulos centrais, tornando o conjunto algo desconjuntado,
apesar de bem escrito.
Natureza-Morta, de Vinícius Jatobá
Antes mesmo de chegar a este conto, já havia lido
manifestações quase unânimes de que este texto de Jatobá, de quem não havia
lido nada ainda na seara da ficção, era uma das grandes surpresas do volume. Ao
lê-l0, entendi por quê. Natureza-morta começa, como entrega o título, com sua
referência a um gênero de representação pictórica de coisas inanimadas, com uma
descrição de uma casa abandonada e já em ruínas:
"Vês a casa e seu tempo, a casa, e apenas ela, embora
ainda existam teus segredos e teus medos e silêncios trancados na opacidade
mineral das portas fechadas e das janelas travadas, teus medos e silêncios
implorando por uma fresta para que escapem de seu inverno que se promete eterno
e abandonem o rumor grave da acumulação cerrada a que estão cativos sem seus
donos e vês, vês a casa, não fujas nem ignores..."
Interrompo a transcrição aqui, porque a descrição prossegue,
sem pontos finais, por mais meia página, quando então começa o outro eixo que
estrutura este conto: uma narrativa em primeira pessoa ¿ que também não fará
uso de ponto final. Jatobá alterna as descrições da casa, estática, morta,
inanimada, pronta para ser demolida, com as vozes em primeira pessoa de seus
antigos habitantes: uma mãe, Vera; um pai, Paulo; e um filho, Pedro. Vera,
costureira, economiza com seu trabalho até o casal comprar um terreno onde será
construída a casa. Paulo é um guarda civil que mais tarde passa a policial e
quase põe a unidade familiar a perder com infidelidade conjugal. Pedro cresce e
toma como esposa uma mulher que a mãe desaprova. A cada alternância de pontos
de vista entre os personagens, mais um detalhe da casa abandonada vai sendo
adicionado para marcar a transição da narrativa ¿ uma estrutura que a partir de
determinado ponto parece mais atrapalhar do que ajudar, uma vez que as
vozes crescem em complexidade e qualidade à medida que o conto avança, e as
descrições parecem mais truncar o leitura do que contribuir para ela. Ainda
assim, em termos formais, o conto de Jatobá é um dos que mais ousam no volume
(embora uma ousadia derivativa, uma vez que Faulkner é uma presença
perceptível). A construção textual é marcante e precisa ¿ com exceção do
início, quando ele usa duas vezes em contextos muito próximos, na mesma página,
o adjetivo "mineral" - a primeira foi no trecho que vocês leram ali
em cima. Depois, logo no início da fala de Vera, a primeira personagem com voz
no conto, que declara: "Paulo apenas me observava, calado, altivo,
mineral, orgulhoso". Repetição de termos tão exóticos tão próximos sempre
é uma quebra na fluência da leitura, e neste caso a fluência é importante.
Ainda assim, é um conto muito bem construído e tem a vertigem que é marca dos
bons exemplares do gênero.
O Rio Sua, de Tatiana Salem Levy
Admiro a obra de Tatiana Salem Levy ¿ como já escrevi em uma
resenha para A Chave de Casa, aqui. Não sei, contudo, o que pensar deste
conto que parece mais um exercício para coisas que ela queria tratar em seu
romance anterior, Dois Rios, do que uma obra autônoma e relevante. Uma jovem
brasileira abandona o homem com quem mantinha uma relação, na Europa, e
regressa ao Rio de Janeiro alguns dias antes do Ano Novo. Não parece haver um
propósito definido, apenas uma "sede de redescoberta". O fato é que
ao trocar o cinza europeu pelo calor do Rio, a protagonista toma uma decisão
que poderia ser temporária mas se revela definitiva. É um conto fragmentário: a
protagonista narar sua volta ao Brasil, depois pula para o momento em que
decidiu voltar, fala dos telefonemas difíceis e cada vez mais constrangedores trocados
entre ela e o homem que ainda pensa ser seu namorado na Europa, relata o
reencontro com a cidade e intercala aforismos que tentam explicar a
"natureza do carioca". O problema é que, se pode-se acompanhar a
história da jovem, seu reencontro com o Rio e seu desencontro com o amante
europeu com algum interesse, o material paralelo é repleto dos chavões mais
disseminados até para mim, que não sou carioca e nem conheço o Rio tão bem
assim:
"Antes do despencar das águas, o Rio pulula, as pessoas
fogem em desespero, os pássaros debandam em alvoroço, as baratas deslizam,
frenéticas, os micos saltam de galho em galho, todos em busca de um abrigo, um
teto qualquer. A cidade palpita de uma hora para outra quando a umidade alcança
um nível insustentável, quando se saber que o clima quente, pesado e pegajoso
vai desmanchar num temporal. E se, por sorte, você estiver num ambiente seguro,
logo verá a força da natureza se impondo, soberana, lembrando-nos o quanto
somos frágeis e passageiros".
Ou ainda:
"Teoria para a alegria carioca I: o suor lubrifica os
músculos, faz-nos mover" ¿ sobre isso em particular: se o suor fosse o
segredo da alegria, você veria as pessoas mais alegres do universo no verão de
Porto Alegre, quando o que ocorre é exatamente o contrário.
A jovem esteve uma vez no Rio com o homem que havia deixado
na Europa. Ele se entusiasmara pelo lugar, enquanto ela, conhecedora do
cenário, mirava tudo com certa má vontade. Até aceitando a paixão aventureira
dele mas impondo o limite de jamais gostar do Carnaval. Pois é no Carnaval que
ela se dá conta que sua relação com o antigo amante acabou, quando se vê
diluída na massa amorfa da multidão:
"O pânico começa a se instaurar e penso nos corpos
organizados do outro lado do Atlântico, até que o ar falta ao cérebro,
amolecendo os membros, e dou permissão ao meu corpo para fazer parte de uma
massa anônima e se misturar a outros corpos até achar um que de fato lhe
apeteça."
Talvez esteja aí o grande problema do conto: a forma ingênua
como revisita a batida dicotomia entre razão e paixão, entre consciência e
corpo, relacionando-a respectivamente ao modo de ser europeu e carioca:
"Hoje, comparando um lugar ao outro, eu diria: a
verdade nem sempre está nas palavras, mas o corpo nunca mente".
Mesmo que o conto de João Paulo Cuenca incluído
neste volume seja flagrantemente inferior no quesito da ourivesaria de
linguagem, sua visão raivosa do Rio parece apresentar aqui e ali vislumbres de
maior originalidade em comparação com este texto que tenta fazer o elogio da
cidade mas não se afasta dos clichês.
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